segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A aritmética não se comove


"Estão a ver o filme?"
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES hoje

Fala-se da crise há anos. Ouvem-se muitas teorias, protestos, fúrias e desânimos, mas no essencial ainda permanece enorme ilusão. As reacções ao recente estudo do FMI mostram acima de tudo profundo irrealismo face à real situação do país.

O texto Rethinking The State-Selected Expenditure Reform Options, pretende "reformar a despesa em Portugal, perante a questão de fundo da dimensão e funções do Estado" (p. 6). Chegámos finalmente a questão decisiva. Após ano e meio de medidas pontuais de emergência, tocamos nas reformas estruturais, discutidas há décadas e sempre adiadas. Perante um contributo tão importante para o nosso problema essencial, a grande maioria das reacções foi extravagante. É caso para perguntar se esses comentadores têm andado por cá ultimamente.

Todos sabemos que o país está na "unidade de cuidados intensivos", ligado à máquina da ajuda externa para sobreviver. Todos concordamos que temos uma crise grave e fundamental, que exige medidas profundas. Mas, logo a seguir a este consenso, grande quantidade dos analistas envereda por uma ilusão cómoda, para evitar enfrentar a realidade. Muita gente está plenamente convencida que a crise se deve a um punhado de maus (corruptos, incompetentes, esbanjadores) e, pior, que basta eliminá-los para tudo ficar normal. Nas actuais circunstâncias esta fantasia é irresponsabilidade criminosa. Num momento tão decisivo e doloroso, acreditar em tolices dessas só aumenta o sofrimento de tantos, prejudicando a urgente solução do problema.

Portugal tem uma dívida nacional externa bruta total quase duas vezes e meia superior ao produto e dívida pública bem acima do que produzimos. Não há corrupções, incompetências e desperdícios que cheguem para justificar uma coisa destas. Quem fez isso não foram os ricos, políticos, ladrões. Tem de ser a vida comum e os hábitos dos cidadãos honestos a gerá-lo. Muitos nos lembramos como estávamos há 20 anos, e como tudo melhorou tão depressa. Muito disso foi mérito e crescimento sólido, mas a euforia empolou e foi-se para lá do razoável. Agora a situação nacional não se resolve só eliminando gorduras. É preciso cirurgia profunda e estrutural. Não é sina nacional, até porque vimos igual noutras zonas. Mas tem de ser feito.

A maioria das críticas olha, não para a situação nacional, mas para os interesses afectados. Falam então em "direitos adquiridos", sem notar que esse é outro nome da doença. Existem direitos básicos que o país tem de garantir a todos. Nesses não se pode tocar, nem ninguém quer que se toque. Mas grande parte dos supostos direitos não foram de todo adquiridos, mas atribuídos irresponsavelmente com dinheiro alemão. Foi bom recebê-los e custa a deixar, mas não há alternativa. Se quisermos um dia lá chegar de forma sustentável.

Cortar 4000 milhões de euros de forma permanente à despesa pública não é a solução. Apenas o primeiro passo para Portugal voltar a ser um país sério. Temos de viver com as nossas possibilidades. Durante uns tempos até um pouco abaixo, para aliviar as dívidas de se ter vivido demasiado tempo acima delas. A correcção não é o fim do mundo: pouco mais de 5% da despesa total prevista no Orçamento para 2013. Pode-se negar, insultar, protestar, mas a aritmética não se comove.

Isto não é novidade. Aliás todos o dizem há décadas. Perdemos a conta aos relatórios, estudos, programas de Governo e discursos de Estado em que foi repetida a necessidade de reformas estruturais. Esse é outro consenso. Quando uma das instituições mais experientes e reputadas neste tipo de reformas analisa a situação e sugere medidas concretas, será razoável tratar isso como um disparate? Uma imposição externa? Uma aleivosia? Será que não estão a ver o filme?

Perante o estudo do FMI há duas atitudes razoáveis. Pode-se aceitar e também é sensato discordar. Afinal é só um estudo técnico externo, nem sequer um programa político. Mas quem recusa tem de apresentar cortes alternativos de valor equivalente. Senão diz só uma tolice ociosa de quem não está a ver o filme.

naohaalmocosgratis@ucp.pt



A reacção pública:


Anónimo 21.01.2013/04:22

Se eu sou um comentador económico e político e vivo com um salário bem gordinho, atribuído por uma empresa do Estado que se financia com recursos públicos na sua maioria, e tem sido assim há anos, agora vem você me dizer que devo concordar em perder o meu posto, o meu salário em nome de coesão social? Você concordava?


Alberto 21.01.2013/07:39

Tem razão JCN. Não há outro caminho. O regime pós 25 Abril foi completamente imprudente e mentiu. O problema é que não é só de comentadores, mas também de políticos que antes disseram uma coisa e agora dizem outra.
Confiança: é a palavra chave. Quem nos tira deste buraco? O voto? Aquele que é condicionado por comentadores em todas as TV's e por candidatos escolhidos a dedo entre os maus exemplos dos Partidos? Que venha o rei ou, pelo menos, uma nova República que assuma uma nova Constituição.


É verdade 21.01.2013/09:42

Alguém tem que alertar o povo que precisamos mudar de vida. São os líderes deste país que precisam fazer o trabalho de instituir boas práticas na administração pública e em todos os sectores da sociedade.
Precisamos de um um Estado auto-sustentável, caso contrário seremos uns falhados, aos altos e baixos como sempre estivemos, sem valorizar o mérito. Talvez no futuro tenhamos que mudar para um governo presidencialista, mais reduzido e mais eficaz, com uma nova Constituição concisa e livre de "verborreia". Força JCN!


Quem fez a Crise? 21.01.2013/10:51

"Portugal tem uma dívida nacional externa bruta total quase duas vezes e meia superior ao produto e dívida pública bem acima do que produzimos. Não há corrupções, incompetências e desperdícios que cheguem para justificar uma coisa destas. Quem fez isso não foram os ricos, políticos, ladrões. Tem de ser a vida comum e os hábitos dos cidadãos honestos a gerá-lo. Muitos nos lembramos como estávamos há 20 anos, e como tudo melhorou tão depressa."
A minha vida melhorou mas não me endividei. Quem fez este brutal défice? Foi o cidadão comum, que pagava tudo a crédito, mas pagava? Não, de certeza que foram os políticos, agora pagamos nós, cidadãos comuns honestos, obras do Estado e tropelias de banqueiros amigos do Estado. Não é justo.


Anónimo 21.01.2013/11:38

Caro amigo, estou a 100% consigo. A começar na Constituição, passando por políticos, ladrões e corruptos, tudo precisa de ser varrido!
Mas o principal é educar o Povo e fazer-lhe ver que embora nos custe muito, não podemos continuar a viver acima das nossas possibilidades, sustentando por exemplo Estados parasitas, como Cabo Verde e Guiné-Bissau e ainda por cima ter de os gramar por cá, roubando, drogando e fazendo filhos para o RSI. O tempo das grandezas imperiais já lá vai e há que pôr a casa em ordem.
Só há um problema: as pessoas não gostam de ouvir as verdades! Deixem de vender ilusões ao Povo. Acha que os interesses instalados aceitam que, de repente, se lhes diga que acabou a bagunça? Tire o cavalinho da chuva!


Mudar o filme eleitoral 21.01.2013/12:47

1) NÓS NÃO ESCOLHEMOS QUEM "ELEGEMOS"! Não podemos continuar a confiar o País à actual classe política. Temos de a trocar por outra, mais séria e competente. É urgente iniciar o debate sobre o sistema eleitoral, praticamente o único na Europa em que os eleitores não podem eleger (e logo escrutinar) os políticos INDIVIDUALMENTE. Este sistema de listas "fechadas" origina VENCEDORES ANTECIPADOS. Em cada eleição, há dezenas de candidatos que sabem que vão ser deputados, independentemente das preferências dos eleitores — chamam-lhes LUGARES ELEGÍVEIS. Este sistema protege as oligarquias partidárias do escrutínio democrático e torna-as impossíveis de desalojar totalmente do parlamento pela via dos votos.

2) NEM TEMOS MANEIRA DE LHES NEGAR O VOTO! O actual sistema eleitoral é uma CHANTAGEM: ou votas no partido e apanhas também com estes "boys", ou vais votar para outro lado. Mas mesmo que não votes, o parlamento enche-se na mesma com 230 deputados e o "boy" é eleito de qualquer forma. Este sistema anula o direito de se negar o voto aos partidos e a políticos individuais. Quando se vota em listas cuja ordem já foi decidida pelos próprios políticos, a democracia é um LOGRO. Quando a ida de determinado candidato para o parlamento não depende das escolhas dos eleitores, tem de depender de alguma outra coisa. E qualquer que seja essa outra coisa, já não é democracia.

3) A RENOVAÇÃO DOS PARTIDOS NUNCA É INTERNA: o sistema eleitoral também impede o eleitorado de fazer a sua parte na renovação dos partidos, ao abafar os sinais que votos nominais transmitiriam sobre quem deve subir nas estruturas partidárias (porque tem votos), e quem deve ir embora (porque ninguém vota nele). Esta situação nunca será desbloqueada sem que a eleição dos deputados passe a ser nominal. Há maneiras simples de o fazer, contra as quais não é fácil "construir" argumentos contra. A mais simples, que pode ser feita sem prejudicar uns partidos em relação a outros, é passar de LISTAS FECHADAS E BLOQUEADAS para LISTAS ABERTAS — assim chamadas porque a ordem de atribuição de lugares é em função de quem tem mais votos.

4) ABRIR AS LISTAS ELEITORAIS À ORDENAÇÃO PELOS VOTOS. A maioria dos países europeus usam o sistema de listas ABERTAS que confere aos eleitores o verdadeiro escrutínio da democracia, pois só vai para o parlamento quem os portugueses quiserem. Se a população em peso exigir essa modernização, os políticos terão dificuldade em arranjar argumentos contra. É garantido que os políticos bloquearão a medida numa primeira fase: não querem submeter-se ao escrutínio duma democracia genuína. Mas se a seguir houver manifestações a exigi-la, terão de ceder. Depois, tentarão "eternizar" o processo de negociações entre bancadas. E tentarão "conter" o escrutínio, por exemplo "inventando" uma lista nacional — fechada e bloqueada, claro.


João César das Neves 21.01.2013/13:04

O meu artigo pode resultar incompreensível sem um esclarecimento. Quando digo que "Muita gente está plenamente convencida que a crise se deve a um punhado de maus (corruptos, incompetentes, esbanjadores) e, pior, que basta eleiminá-los para ficar tudo normal." referia-me, naturalmente ao consulado desse bêbado conhecido por Sócrates. Eu próprio defendi em vários artigos essa teoria e exigi a demissão do falso filósofo.
Mas atenção! As coisas agora são completamente diferentes. Agora, "Nas actuais circuntâncias esta fantasia é uma irreponsabilidade criminosa." Porquê? Porque antes quem gamava eram os corruptos, incompetentes e esbanjadores a agora já "Não há corrupções, incompetências e desperdícios que cheguem para justificar uma coisa destas. Quem fez isso não foram os ricos, políticos e ladrões. Tem de ser a vida comum e os hábitos dos cidadãos honestos a gerá-lo."
Portanto, muita atenção ao ler o artigo para não se gerar confusões: há uma época em que o endividamento é provocado pelos ricos, políticos e ladrões — é a época do famigerado Sócrates — e depois uma segunda época em que o endividamento aumentou e é provocado pela vida comum e os hábitos dos cidadãos honestos — é a época do meu querido Coelho. Perceberam? Ou querem que faça um desenho?


Anónimo 21.01.2013/13:54

«A essência do fanatismo reside no desejo de obrigar os outros a mudar. Nessa tendência tão comum de melhorar o vizinho, de corrigir a esposa, de fazer o filho engenheiro ou de endireitar o irmão, em vez de deixá-los ser. O fanático é um grande altruísta. Está mais interessado nos outros do que em si próprio. […] O fanático morre de amores pelo outro. Das duas uma: ou nos deita os braços ao pescoço porque nos ama de verdade, ou se atira à nossa garganta em caso de sermos irrecuperáveis.» [Amos OZ, "Contra o Fanatismo", 2007: 22-3]


Arnestino Trocaletra 21.01.2013/15:33

Caro Irmãozinho das Neves Altíssimas, concordo com quase tudo o que diz, mas acho que o Irmãozinho se recusa a ver o filme todo. Tem neste artigo uma tese improvável quando recusa que "muita gente está plenamente convencida que a crise se deve a um punhado de maus (corruptos, incompetentes, esbanjadores)". Se recusar liminarmente esta tese nunca chegará a compreender o que se passou e continua a passar neste país.
Todos quantos dirigiram o país são responsáveis pela má gestão e imprevidência que nos trouxe até aqui. E a corrupção também não pode ser escamoteada. A solução é eliminá-los? Com certeza que isso é importante, mas não fisicamente. O que é preciso é mudar os sistemas, alguns vertidos na Constituição, que estimularam a desgraça.


joao americo oliveira ram 21.01.2013/16:46

O PACIENTE É SEMPRE O MESMO: "Agora a situação nacional não se resolve só eliminando gorduras. É preciso cirurgia profunda e estrutural. Não é sina nacional, até porque vimos igual noutras zonas. Mas tem de ser feito. Cortar 4000 milhões de euros de forma permanente à despesa pública não é a solução. Apenas o primeiro passo para Portugal voltar a ser um país sério."
Tudo bem, caro professor. O que não parece bem, mas sim hipocrisia, é fazer a "cirurgia" em cima dos salários dos trabalhadores e dos benefícios dos aposentados. Esses já foram objecto de todas as "cirurgias" anteriores, feitas pelo actual governo. Já não aguentam mais. Que o cirurgião chefe, encontre outros pacientes, entre os poderosos. Um pouco de coragem não faz mal a ninguém.

Maria do Vale 21.01.2013/17:25

Ex.mo Sr. joao americo oliveira ram,
Sabe que a maioria da conta pública são salários e pensões? Aconselho-o a ler e a informar-se mais um pouco para evitar comentários que o possam fazer passar por ignorante ou calino.


Liberal 21.01.2013/17:09

Bravo ao professor João César das Neves, este é um dos únicos portugueses que aqui se atreve a dizer aquilo que tem que ser dito.
Basta de aumentos de impostos, o Monstro tem que levar uma banda gástrica, e imediatamente.


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