segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A visão de um economista europeu sobre as nossas Finanças Públicas


Jürgen von Hagen é membro do Conselho das Finanças Públicas e um dos economistas europeus de referência na área das Finanças Públicas.

Nesta entrevista ao PÚBLICO critica a ausência de reestruturação da dívida pública durante a concepção e a negociação do programa de ajustamento económico e financeiro (PAEF) em 2011, com envolvimento do sector privado. No entanto, afirma que, depois do programa começar a ser executado, tal já não era possível.
Recorda que o programa privilegiava os cortes da despesa em vez dos aumentos de impostos que acabaram por acontecer e prejudicaram o crescimento económico.

Considera que, em democracia, tem-se uma Constituição que é defendida pelo Tribunal Constitucional.

Também critica a necessidade de orçamentos rectificativos e a falta de estratégia na gestão orçamental em Portugal e aconselha o País a ter um programa cautelar para se precaver contra acontecimentos negativos.

Destacamos esta parte da entrevista:


Tinha a ideia de umas finanças públicas fora de controlo em Portugal, à semelhança da Grécia? As suas ideias em relação a isso mudaram?
Em primeiro lugar tenho de dizer que Portugal é um caso muito diferente da Grécia. Felizmente. Principalmente porque imediatamente depois das primeiras dificuldades, se começaram a ver na Grécia pessoas na rua a queimarem bandeiras e esse tipo de coisas. Fora de Portugal, penso que sempre houve a ideia de que era um país com uma muito melhor cultura política e mais apoio público ao ajustamento orçamental. Dito isto, mesmo antes de 2011, era evidente que Portugal tinha problemas com as suas finanças públicas. A despesa tinha um crescimento tendêncial de longo prazo elevado, a dívida era mais alta do que devia e, por isso, era claro que a havia vulnerabilidades orçamentais. Mas não ao nível do que acontecia na Grécia. Logo no início, ficou claro que muitas coisas não eram controladas em termos legais na Grécia. Aliás na Alemanha, a opinião pública assimilou muito rapidamente a ideia de que Portugal era o “bom aluno”. E, em certa medida, foi bom para Portugal ter os problemas da Grécia em simultâneo porque isso afastou as atenções.

Qual é a sua opinião? Temos sido o “bom aluno”?
Sim e não. Não acho que tenha sido apenas notas “A” e acho que há uma série de oportunidades perdidas neste processo de ajustamento. É claro que tem havido sucessos. Estamos agora perante a possibilidade real de regressar ao financiamento de mercado em condições razoáveis. Isso é bom, é um sucesso. Mas se se olhar para o programa de ajustamento inicial, este parecia muito mais razoável do que aquilo que se veio a verificar. O programa dava mais importância aos cortes da despesa, com muito menores aumentos de impostos do que aquilo que Portugal acabou por conseguir fazer. Houve uma tendência em 2011 para ser demasiado optimista.

Foi o programa que foi mal concebido ou a execução que falhou?
Acho que foi uma mistura das duas coisas. O programa era demasiado optimista e parte disso deve-se ao facto de termos as instituições europeias – a Comissão e o BCE – envolvidos. As instituições europeias tendem a ser, quase por definição, demasiado optimistas em relação à economia. Nenhuma destas instituições tinha experiência em programas de ajustamento orçamental e incluíram um grau elevado de optimismo porque sentiram que havia a necessidade de vender estes programas à opinião pública europeia. Mais realismo, faria com que a sua aceitação fosse mais difícil.

Com “mais realismo” quer dizer “mais tempo”?
Mais realismo quer dizer um retrato mais realista daquilo que a consolidação orçamental significa para o crescimento económico. Os governos portugueses tiveram a tendência, durante muito anos, para sobrestimar o crescimento económico nas suas previsões, mas o mesmo revelou-se verdade para os programas de ajustamento. E com este cenário mais benigno como base, assumiu-se que se poderia corrigir os desequilíbrios orçamentais muito rapidamente e ao mesmo tempo garantir um crescimento económico forte. Tudo isto acabou por se revelar demasiado optimista. Em relação à implementação, o Governo sobreavaliou a sua capacidade para cortar nas despesas. No desenho do programa, a maior parte do ajustamento era feito através do corte de despesas, mas na realidade a maior parte do ajustamento veio do aumento de impostos. Isso provocou um dano maior e mais duradouro para o crescimento económico. Se olhar para episódios de ajustamento em países europeus do início dos anos 90 até meados da primeira década deste século, há um padrão muito consistentes que mostra que os países que tentaram realizar uma consolidação através do aumento das receitas tiveram muito menos sucesso do que os países que o fizeram cortando nas despesas.

Mesmo no curto prazo?
O impacto macroeconómico no curto prazo é mais ou menos o mesmo. Mas se se aumenta os impostos, criam-se expectativas menos positivas para a economia no longo prazo. As pessoas vêem que a carga fiscal está elevada, que não compensa tanto trabalhar como se gostaria e assim criam-se expectativas mais negativas do que se cortar na despesa.

Cortar despesas como salários e pensões não tem o mesmo tipo de efeito negativo nas expectativas?
Não necessariamente. Pode ser mais ou menos o mesmo para o consumidor, mas não é o mesmo para o investimento empresarial. Mas claro que tudo depende de qual os impostos que são agravados e quais as despesas que são cortadas.

Olhando para as reduções no défice que foram conseguidas, não teria sido possível ter conseguido isto com um nível de esforço bastante menor e com menos custos sociais?
Acho que houve também uma dose significativa de azar. Quando Portugal entrou no programa de ajustamento, tanto a economia mundial como a europeia ficaram mais fracas. Quando se olha para outros programas de ajustamento, como o sueco do início dos anos 90, a situação que enfrentavam era semelhante à de Portugal, mas tinham uma conjuntura internacional bastante benigna e isso ajudou-os muito. Portugal não pode fazer muito quanto a isso. Tem de se aceitar a conjuntura económica como ela é.

Defende portanto que não havia alternativas?
Houve um momento em que se discutiu um regresso à moeda nacional, desvalorizando-a e reconquistando competitividade, mas eu acho que isso não faz sentido. Poderia ajudar no muito curto prazo, mas as consequências a prazo seriam muito mais difíceis.

E não teria sido possível ter um apoio mais forte e prolongado dos parceiros europeus, que permitisse a Portugal fazer o ajustamento de uma forma mais progressiva?
Eu olharia para essa questão de outra forma. Acho que houve uma oportunidade perdida, no início da crise, ao não envolver mais o sector privado na solução do problema da dívida. Essa oportunidade foi perdida porque a partir de determinada altura assumiu-se no discurso político que toda a reestruturação de dívida implicava necessariamente uma saída do euro. Não há qualquer regra lógica que diga isso. Mas a partir do momento em que o programa de ajustamento foi iniciado, a reestruturação deixou de ser uma opção. Deveria ter sido uma opção durante as negociações do programa.

Tanto para Portugal como para a Grécia?
Sim para os dois países. A Grécia, em 2012, acabou por ter a sua reestruturação porque se tornou inevitável. Um dos falhanços feitos no desenho do programa de ajustamento foi subestimar o caminho que a dívida pública tomou. A esperança era a de que a dívida pública em percentagem do PIB caísse muito mais do que aconteceu. E tal não aconteceu por causa do crescimento económico, mas também por causa do efeito nível. Quando se chega a níveis muito elevados de dívida torna-se muito, muito difícil colocar a economia a crescer a um ritmo satisfatório.

Essa questão não está resolvida em Portugal. Não é possível pensar ainda numa reestruturação?
Parece-me que agora já não é uma opção. E o que isto significa é que Portugal está, durante um período substancialmente longo de tempo, preso a elevados níveis de dívida, o que quer dizer que o país vai precisar de uma disciplina orçamental muito consistente e anos suficientes de excedentes primários orçamentais para baixar o rácio de dívida. O Governo prevê que a dívida apenas chegue aos 60% do PIB em 2037, com excedentes primários permanentes.

Acha isso realista?
Claro que qualquer coisa que o país possa fazer para aumentar a sua taxa de crescimento de longo prazo poderá encurtar esse período. Por isso, acho que a grande prioridades nos próximos anos tem de ser fazer crescer o crescimento de longo prazo. Não é um crescimento relacionado com o ciclo económico, não estou a falar de políticas do lado da procura, falo antes de tornar o investimento mais atractivo, especialmente no sector dos bens transaccionáveis, para que se possa ter capital estrangeiro a financiá-lo.

É esse o tipo de crescimento que começamos a ter agora?
Acho que o que estamos a ver agora é apenas uma inversão do ciclo económico negativo. E daquilo que eu estou a falar é do crescimento tendencial de longo prazo, o que para um país como Portugal tem de ser próximo de 3%. Esta seria uma meta razoável. Em termos de politicas essa deve ser a prioridade para os próximos anos, muito mais do que a procura agregada.

E é realista pensar que todos os países na Europa adoptem a mesma estratégia ao mesmo tempo e que apliquem o pacto orçamental?
Sim, esse é um problema. Em 2010 eu fui um dos autores de um estudo do Bruegel enviado para a Comissão Europeia onde se defendia como é que se devia sair do modo crise de estímulos orçamentais em que se tinha estado em 2008 e 2009. E dizia-se que os europeus deviam ver quais os países com maiores dificuldades orçamentais e permitir que esses países saíssem mais rapidamente do modo crise. Por outro lado, os outros países, incluindo a Alemanha, deviam manter estímulos orçamentais por mais tempo. Isso teria ajudado em certa medida Portugal, mas a coordenação de políticas económicas na zona euro é muito fraca e não houve qualquer acordo a esse nível.

Como é que vê o papel que o Tribunal Constitucional está a desempenhar m Portugal?
Para mim é difícil julgar. Não sou jurista e não conheço em detalhe a lei. O que temos visto é que o Tribunal tem interferido com as políticas orçamentais que o Governo aprovou. De fora, o que se pensa é que se isso acontece uma vez é um problema, mas se acontece uma segunda vez, a pergunta que se faz é porque é que o Governo não antecipou isto. O Tribunal Constitucional parece colocar muito enfase na equidade e na justiça. E esse é o seu papel. Se os governos não gostam, então devem ou mudar a constituição ou adaptar as suas políticas. Em democracia, tem-se uma constituição e esta é mantida pelo Tribunal Constitucional.

O que seria melhor para Portugal: um segundo resgate, adoptar um programa cautelar ou avançar sozinho para os mercados?
Depende daquilo que são as expectativas de longo prazo. Se Portugal pedir um segundo resgate, obviamente isso seria um sinal de que o programa assinado em 2011 não funcionou. E isso significaria que as instituições europeias provavelmente ainda iriam impor condições mais rígidas, porque pensariam “agora temos de garantir mesmo que funciona”. Sair do programa, sem qualquer outro apoio, obviamente que seria a melhor solução, uma vez que aumentaria a confiança própria do país. Mas seria muito arriscado. Seria arriscado no sentido em que se alguma coisa má acontece à economia mundial, ou se alguma coisa má acontece a um dos principais parceiros comerciais europeus, teria de se voltar à EU e dizer “afinal precisamos de mais ajuda”. Isto para mim significa que se se puder ter um programa cautelar e usá-lo como uma espécie de seguro contra eventos negativos, essa seria a boa solução.

Mas esse programa cautelar também viria com condicionalidade...
Sim. Mas o melhor cenário seria para o Governo português delinear a sua melhor estratégia orçamental para os próximos anos e depois chegar junto dos parceiros europeus e dizer: “é isto que queremos fazer, é para isto que precisamos do vosso seguro para o caso de algo negativo acontecer”. Quanto mais iniciativa deixarem para os parceiros europeus, mais condições estes irão impor. E por isso é preciso começar a olhar com muita atenção para o programa orçamental de médio prazo que o Governo vai ter de apresentar em Maio. Pensar nele como uma verdadeira decisão estratégica, muito mais do que foi feito no passado.

Estudou o processo orçamental em Portugal nos anos 90, o que acha dele agora?
Nos últimos anos houve muitas mudanças… Sim, e parte do problema está aí. Num certo sentido, pode-se dizer que não há um processo orçamental neste país porque está constantemente a ser mudado de acordo com o que é politicamente conveniente. O papel de um processo orçamental deveria ser o de guiar as expectativas e acções políticas. E o que vemos é que não é um guia, porque está sempre a mudar, não é nada transparente e ninguém percebe muito bem qual o papel de cada instituição no processo.

O que era importante fazer?
Parece-me que no orçamento há demasiados controlos legalistas por parte do ministro das Finanças, o que lhe dá a ilusão de ser muito poderoso quando, de facto, comparado com outros ministros das Finanças europeus, o ministro português parece-me ter muito pouco poder na gestão das finanças públicas.

Porquê?
Quando se cai numa situação de crise, o ministro tenta controlar tudo através de procedimentos legais. Impõe-se limites às despesas, congelamentos, autorizações para gastar, todos estes tipos de coisas que, no fim, acabam por ser um convite aos outros ministros e entidades da Administração Pública para fazerem pequenos jogos à volta das regras. E não se atinge o objectivo de verdadeiramente gerir as finanças públicas. O papel dos ministros das Finanças dos outros países europeus é bastante diferente. Em vez de fazer uma micro gestão, o ministro tem o papel de gerir os grandes agregados orçamentais. E depois o controlo legal e a micro gestão é deixada para os ministros das pastas sectoriais.

E como é que se controla a despesa?
Cada ministro tem uma despesa alocada que pode realizar. Vai ter de gerir com essa despesa, havendo penalizações se não o fizer. Claro que isso exige que cada ministro tenha capacidade de gestão que lhe permitam tomar a decisão de, quando precisa de mais dinheiro numa área, poder cortar noutra. Para o ministro das Finanças é suficiente controlar os grandes agregados. Da forma como as coisas funcionam, um dos grandes problemas é que há uma grande falta de estratégia. Um exemplo é que em Maio é apresentado um programa com previsões orçamentais de médio prazo, mas em Outubro, quando se apresenta o orçamento, ele já está completamente esquecido. Isso tem muito a ver com o facto de o ministro das Finanças estar ocupado com detalhes em vez de se centrar na definição de uma estratégia.

É por isso que temos tantas receitas extraordinárias e tantos orçamentos extraordinários?
Um dos melhores indicadores da qualidade de um processo orçamental é o número de revisões do orçamento que são feitas durante um ano. Num bom processo orçamental não deveria haver revisões, porque o próprio orçamento já devia prever o que é que se faz quando se verifica meno receita fiscal ou mais receita fiscal. O facto de haver tantas revisões em Portugal significa que quando as pessoas escrevem o orçamento em Outubro, não o levam muito a sério. Já se está à espera que haja pelo menos um orçamento rectificativo. Por isso, porquê preocuparm-se em demasia com o primeiro orçamento. E isso, claro, torna os procedimentos muito fracos.


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