domingo, 4 de maio de 2014

In Memoriam Veiga Simão



José Veiga Simão
(1929-2014)

Nasceu na aldeia de Prados, concelho de Celorico da Beira, distrito da Guarda, em 13 de Fevereiro de 1929. Ainda frequentou o Liceu Afonso de Albuquerque, na Guarda, mas fez o ensino secundário em Coimbra, para cuja universidade o irmão mais velho tinha ido estudar.

Licenciou-se em Ciências Físico-Químicas na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, em 1951, e doutorou-se em Física Nuclear na Universidade de Cambridge, em 1957, tendo regressado a Coimbra para seguir a carreira de professor universitário.

O seu doutoramento numa prestigiada universidade inglesa granjeou-lhe convites para cargos políticos.
Em 1963, António de Oliveira Salazar nomeou-o reitor da primeira universidade de Moçambique, em Lourenço Marques, actual Maputo.
Em Janeiro de 1970, foi Marcello Caetano que o convidou para suceder a José Hermano Saraiva como ministro da Educação Nacional. Aceitou com a ideia de transformar o ensino e o País: “Eu assumia que a única possibilidade, a única nesga de oportunidade que Portugal tinha para caminhar um pouco mais depressa para uma democracia inevitável e desejável era através da educação”, revelou numa entrevista em 2001.

Procurou provocar uma profunda transformação no ensino não superior com a publicação, em 1973, da primeira Lei de Bases do Sistema Educativo que previa a unificação do ensino liceal e do ensino técnico e alargava a escolaridade obrigatória para oito anos, regulamentada como gratuita. O alargamento da escolaridade obrigatória acabou por ficar suspenso devido às alterações do pós-25 de Abril, apenas prosseguiu a via única de ensino que se revelou uma utopia.

Foi no ensino superior que conseguiu realizar uma reforma efectiva, que ficou conhecida como reforma Veiga Simão. Resumidamente, o contexto era o seguinte:

  • O plano de estudos do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (actual ISEG) fora aprovado pelo Decreto 37.584, de Outubro de 1949, pelo ministro Fernando Pires de Lima que ficou tristemente célebre pela demissão compulsiva por delito de opinião de 26 professores universitários.
  • Fora feita a reforma das licenciaturas nas Faculdades de Letras pelo ministro Francisco de Paula Leite Pinto (1955-1961) através do Decreto 41.341, de Outubro de 1957.
  • No âmbito de uma profunda reforma do ensino superior concretizada através do Decreto 45.840, de Julho de 1964, o ministro Inocêncio Galvão Teles (1962-68) fez a reforma das Faculdades de Ciências, tendo aumentado para cinco anos a escolaridade das suas licenciaturas, procedido à divisão da licenciatura em Matemática em duas e à separação da Física e da Química na licenciatura em Ciências Físico-Químicas.
    Pelo Decreto 48.627, de Outubro de 1968, o bacharelato passou a existir nas Faculdades de Letras e a constituir habilitação académica suficiente para admissão ao estágio para professor do ensino liceal.

Era preciso reestruturar os cursos de ciências económicas e sociais e definir dois ciclos de estudos também nas Faculdades de Ciências.

Veiga Simão começou por introduzir alterações no plano de estudos do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras pelo Decreto 512/70.
A reforma profunda chegou pelo Decreto 520/72, de 15 de Dezembro, que definiu a estrutura dos cursos professados no então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (actual ISEG) — bacharelatos e licenciaturas em Economia e em Organização e Gestão de Empresas —, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, criado em Dezembro de 1972, — bacharelatos e licenciaturas em Ciências do Trabalho e em Organização e Gestão de Empresas —, e no então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (actual ISCSP) — bacharelatos em Ciências do Trabalho e em Economia e licenciatura em Ciências Sociais — que passavam a ser ministrados em semestres lectivos.

A revisão da orgânica dos bacharelatos e licenciaturas nas Faculdades de Ciências pelo Decreto 443/71, de 23 de Outubro, permitiu-lhes conferir os graus de bacharel e de licenciado e estabeleceu o regime semestral de frequência e exames para melhorar o rendimento do ensino e o nível de exigência. Mas a característica desta reforma que mais influenciou o futuro do País foi o desdobramento das licenciaturas em Matemática, em Física, em Química, em Geologia e em Biologia em dois ramos:
  • Especialização científica;
  • Formação educacional.
Os planos de estudos para o 4.º e 5.º anos do ramo de especialização científica eram elaborados pelo corpo docente das Faculdades e continham disciplinas com exames, tal qual os três primeiros anos do curso.

O decreto estipulava um plano de estudos para o 4.º e 5.º anos do ramo de formação educacional explicitando até os nomes das oito disciplinas do 4.º ano, todas na área das ciências pedagógicas, e exigindo a elaboração de uma monografia científica a concluir no 5º ano que era ocupado por um estágio pedagógico numa escola do ensino não superior.
Na verdade, o que se passou na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa entre 1971 e 1974, e nas outras não terá sido diferente e poderá ser confirmado pelos professores universitários ainda vivos, foi o direccionamento dos alunos do bacharelato com médias fracas, entre 10 e 12 valores, para o ramo educacional com a concomitante entrega da total responsabilidade da leccionação do 4º ano a licenciados oriundos das Faculdades de Letras.
Estes facilitaram a avaliação dos alunos, substituindo os exames por trabalhos que se limitavam a pouco mais que uma colecção de fotocópias legendadas à mão, aos quais foram atribuídas notas elevadas. E a monografia transformou-se num relatório das vivências do estagiário durante a sua experiência de ensino no 5º ano.

A carência de professores era de tal ordem que, já no início da década de 1980, e mesmo em escolas situadas a poucas dezenas de quilómetros das cidades, ainda eram aceites, como professores de Matemática e de Física, os alunos que acabavam de concluir o ensino secundário. O actual primeiro-ministro leccionou Matemática nestas condições numa escola do ensino secundário em Vila Pouca de Aguiar, no ano lectivo 1982-83. Por isso as Universidades de Lisboa, Porto e Coimbra aceitaram dar licenciaturas que mais não tinham que três anos de estudo, mas tal atitude veio a desencadear uma situação profundamente injusta¹.

A duplicação dos exames acarretada pela criação dos semestres reforçou a irritação provocada pela guerra colonial entre os alunos revolucionários provenientes da classe social média-alta. A pedido dos directores de algumas faculdades da Universidade de Lisboa, Veiga Simão anuiu na colocação de vigilantes — os “gorilas” —, uma medida necessária para permitir a realização das actividades lectivas e de avaliação, senão as greves decretadas pelas associações de estudantes nas mãos do MRPP não nos permitiam fazer testes, nem exames.

As condições de integração dos alunos que já frequentavam estes cursos nos novos planos de estudo foram estabelecidos, como é usual, pelas Faculdades.
Assim sucedeu na licenciatura em Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Se, no ano lectivo 1971-72, os alunos do 2º ano só tiveram, no máximo, que se adaptar a uma disciplina de continuação — a Mecânica Física II —, e os do 4º e 5º anos conseguiram passar pelos pingos da chuva, já o mesmo não sucedeu aos alunos do 3º ano. Sofremos um duro golpe na auto-estima ao sermos obrigados a fazer, no lugar das disciplinas de opção, as cadeiras de Mecânica Física II (1º semestre), Electromagnetismo II e Física Atómica e Molecular (2º semestre), todas do 2º ano. Com a agravante da Mecânica Quântica começar nas equações de Hamilton-Jacobi que era onde terminava a Mecânica Física II, ambas cadeiras do mesmo ano e semestre para nós...

O lado bom foi podermos usufruir de um rejuvenescimento da licenciatura que subiu para o nível de exigência das licenciaturas das melhores universidades de França, Inglaterra ou Estados Unidos. Numa vertente pouco lembrada da “primavera marcelista”, este renascimento deveu-se ao convite de Veiga Simão a professores que haviam feito doutoramento em França, ou até estavam a trabalhar no Instituto Henri Poincaré, em Paris, para regressarem a Portugal: recordamos Maria Helena Andrade e Silva (Mecânica Física II), Noémio Macias Marques (Electromagnetismo II) e João Luís Andrade e Silva (Mecânica Quântica).

Na sua evocação, David Justino, antigo ministro da Educação, fala de "um homem que fez da educação um desígnio pessoal".
E o actual ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, destacou o papel de Veiga Simão na “ampliação e diversificação da rede de estabelecimentos de ensino superior em Portugal”, que incluíram a criação das universidades do Minho, Aveiro, Nova de Lisboa e Évora, em 1973.

Afastado do Ministério da Educação Nacional pela revolução de 25 de Abril, Veiga Simão foi embaixador de Portugal nas Nações Unidas, entre 1974 e 1975, e posteriormente professor convidado da Universidade de Yale, nos Estados Unidos.
Em 1978 regressou a Portugal para presidir durante cinco anos ao recém-criado Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial (LNETI) que incorporou a antiga Junta de Energia Nuclear.
Eleito deputado pelo distrito da Guarda na lista do partido socialista, em 1983, assumiu, de seguida, a pasta da indústria e Energia no governo do bloco central de Mário Soares e Mota Pinto (1983-85).
Retorna à vida académica, entre 1985 e 1992, como professor catedrático da Universidade da Beira Interior.
A partir de Novembro de 1997, voltou a exercer funções políticas como ministro da Defesa Nacional no primeiro governo de António Guterres, cargo de que pediu a demissão em Maio de 1999 após a polémica do envio de documentos sobre os serviços secretos portugueses que continha uma listagem dos elementos operacionais.

Na entrevista ao PÚBLICO de 2001, foi-lhe perguntado se era um homem de esquerda.
Veiga Simão respondeu que tinha “grandes preocupações com a igualdade de oportunidades, com a injustiça social, horror por ver quem utilize os seus patrimónios para dominar outros”. Se ser de “esquerda” era “independência de pensamento” e “capacidade individual”, então o epíteto ajustava-se: “Guio-me pela minha cabeça, nunca fui servo de ninguém. Aprendi a viver com o granito, não dobro.



Nota:
  1. Com as universidades fechadas pela revolução do 25 de Abril, o destino da quase totalidade dos alunos do ramo da especialização científica foi o ensino básico e secundário onde, em 1980, foram obrigados pelo ministro Vítor Crespo a fazer um estágio de dois anos para poderem entrar nos quadros das escolas onde já se encontravam os seus colegas do ramo educacional.
    A segunda hecatombe foram as passagens administrativas nos anos lectivos 1973-74 e 1974-75. Na década de 1980 começou a gestação da terceira hecatombe com a criação das universidades privadas que, para conseguirem vender licenciaturas, inflacionaram as classificações.
    Quarenta anos depois, as sequelas destas três vagas podem observar-se, quer nos fracos resultados de demasiados alunos nos exames nacionais dos ensinos básico e secundário, quer na obediência canina da maioria dos docentes às ordens emanadas do PCP através de um sindicalista grosseiro chamado Mário Nogueira.


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