quinta-feira, 2 de outubro de 2014

António Costa aprovou projectos do Hospital da Luz antes de novo plano estar em vigor


António Costa aprovou em 2013 dois projectos de obras do Hospital da Luz, quase um ano antes de entrarem em vigor as alterações ao plano de pormenor que viabiliza parte delas.

Essas alterações foram feitas a pedido da empresa do Grupo Espírito Santo (GES) proprietária daquele hospital, a Espírito Santo – Unidades de Saúde (ESUS), que as solicitou por escrito em 2009 quando a câmara já estava a preparar uma revisão do plano que as não contemplava.

Um dos projectos inclui uma pequena ampliação do hospital cuja execução ficou parcialmente condicionada à publicação em Diário da República das alterações ao Plano de Pormenor do Eixo Urbano Luz-Benfica (PPEULB), o que ocorreu no dia 8 do mês passado.

O outro projecto, a construção de um novo parque de estacionamento subterrâneo de apoio ao hospital, foi aprovado em Novembro sem qualquer condicionalismo. As obras começaram em Fevereiro e estão quase concluídas.
O parque de estacionamento foi construído num lote de terrenos municipais criado para o efeito, o n.º 41, que resulta das alterações ao plano agora publicadas que permitem também o lançamento da hasta pública através da qual a ESUS adquiriu o direito de ali construir o parque.

A câmara municipal de Lisboa procurou justificar estes factos dizendo que, ao contrário das primeiras obras, a construção do parque não dependia da alteração do plano:
A localização de um parque de estacionamento sob a via pública, não alterando o seu traçado e considerando que a sua área de construção não é contabilizada para efeito dos índices do plano, não constitui numa alteração do plano de pormenor. Nestes termos procedeu-se à aprovação do projecto de arquitectura do parque de estacionamento.

Confrontado com esta tese, o anterior director-geral do Ordenamento do Território, Paulo Correia, foi peremptório: “Autorizar uma obra com essas características sem o plano de pormenor estar alterado constitui uma violação do plano que estava em vigor.
Na opinião deste professor de Urbanismo do Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa, o parque só poderia ser licenciado se o plano em vigor definisse o local da sua implantação no subsolo, os acessos e a área de construção, algo que não sucedia. Por isso mesmo, acrescentou, é que ele foi incluído na revisão do plano.

Opinião corroborada pelo ex-presidente da Comissão de Coordenação Regional de Lisboa e Vale do Tejo, Fonseca Ferreira, que foi um dos autores do Plano Director Municipal de Lisboa de 1994: “Então, se o parque não tinha de estar no plano, por que é que o foram lá meter na revisão?” A questão “é muito clara”, sublinhou. “A construção do parque sob a via pública só seria possível se o regulamento do plano o dissesse.

Do lado da câmara, a explicação para o novo plano ter integrado esta infra-estrutura é a seguinte: “No âmbito da revisão do plano, estando já constituído o direito de superfície e aprovado o projecto do parque de estacionamento, entendeu-se incluir esta realidade.
Só que o direito de superfície que originou “esta realidade” foi constituído precisamente com o fundamento de que os documentos preparatórios da revisão do plano já a contemplavam.

A hasta pública

Na verdade, no início do ano passado, a câmara aprovou o lançamento de uma hasta pública cujo objecto era a venda do direito de construção de um parque de estacionamento atrás do Hospital da Luz, por baixo da Av. dos Condes de Carnide, em terrenos municipais, e sua exploração durante “99 anos improrrogáveis”. O parque tinha exactamente as características daquele que os estudos para a alteração do PPEULB para ali previam: 596 lugares, quatro pisos subterrâneos e 15.480 m2 de área total de construção.

Esta hasta pública, divulgada nos termos da lei, realizou-se em Março de 2013, sendo entregue apenas uma proposta subscrita pela ESUS, com o valor de 1.760.001 euros, um euro acima da base de licitação.

Antes de entregar a proposta, a ESUS pediu e obteve da câmara a garantia escrita, também divulgada publicamente, de que, em caso de aquisição, poderia construir “ligações viárias e pedonais de nível entre este parque e o parque actualmente existente no Hospital da Luz”. A câmara apenas impôs a condição de que o novo parque teria de constituir uma “unidade funcional autónoma”, que “em qualquer altura” pudesse ser desligada do parque do hospital.

Feita a escritura de cedência do direito de superfície a 11 de Julho de 2013, a ESUS submeteu, seis dias depois, dois projectos à câmara. Um, de “alteração interior e ampliação” do hospital, incluía “a necessidade de adequar a circulação e os acessos pedonais entre os pisos de estacionamento e os pisos” daquela unidade de saúde, ligações estas cuja construção já fora previamente garantida por escrito; o outro relativo à construção do parque de estacionamento.

O primeiro projecto foi logo aprovado a 30 de Agosto por António Costa, com base num parecer de Jorge Catarino, director municipal de Gestão Urbanística, que propõe a separação do projecto em duas componentes: uma, a ligação entre o parque novo e o antigo, a outra, as obras interiores que implicam um acréscimo de 361 m2 na área construída do hospital, que “não se enquadra” no plano então em vigor.
Catarino propunha essa separação, “caso se verifique que os prazos de entrada em vigor das alterações ao PPEULB não se ajustam aos prazos pretendidos para o presente processo”. A primeira componente da obra é aprovada de imediato por António Costa, enquanto a segunda fica condicionada à entrada em vigor do novo plano.
Antes, a Divisão de Projectos Estruturantes pedira ao sector do planeamento que informasse sobre as alterações propostas para aquele local na revisão do plano, “face à urgência da análise do processo”.

O segundo projecto, a construção do parque de estacionamento, foi alvo de numerosas objecções nas informações dos serviços, mas acabou por ser aprovado por António Costa a 14 de Novembro, não sendo imposta qualquer condição relacionada com a entrada em vigor do novo plano, apesar da proposta de incluir o parque nele ter servido de justificação para o lançamento da hasta pública.
O despacho de aprovação de António Costa refere o facto de ter sido levantado “um conjunto de questões” pelos técnicos que apreciaram o projecto, às quais considera ter sido “dada integral resposta pelos dirigentes da direcção municipal em causa” que rebateram as objecções suscitadas e por um dos seus assessores jurídicos. “Assim”, conclui Costa, “aprovo o projecto apresentado pela Espírito Santo – Unidades de Saúde e de Apoio à Terceira Idade SA [nos termos propostos pelo director municipal].”
A única ressalva colocada por Catarino foi a de que “a emissão do alvará de construção ficará condicionada à adequação dos limites do direito de superfície”, constantes da escritura, aos limites que o projecto impõe e que implicam a cedência de uma área superior, devendo o acréscimo ser pago pela ESUS.

Passados três meses, em Fevereiro deste ano, a câmara deferiu um pedido de autorização para a realização de “obras antecipadas de escavação e contenção periférica” apresentado pela ESUS, graças à qual as obras foram iniciadas e a estrutura do novo parque está neste momento concluída.
A câmara justifica o facto da obra ter sido praticamente feita com uma licença que previa apenas a escavação e a contenção periférica, sem ter sido emitido o alvará de construção, dizendo que “no âmbito do projecto autorizado está prevista a execução de partes da estrutura dos pisos por forma a conferir o necessário travamento estrutural das paredes periféricas”. Este procedimento “é comum em praticamente todos os processo de licenciamento com execução de caves”.
Sobre a realização da escritura de acerto da área cedida, que condiciona a emissão do alvará definitivo, a autarquia responde que “será celebrada após a entrega dos desenhos definitivos” feitos depois da conclusão da obra.

Projectos do Risco
Ambos os projectos aprovados no ano passado são da responsabilidade do atelier Risco, propriedade da família do arquitecto Manuel Salgado, autor do projecto do Hospital da Luz em 2001. Salgado desempenha as funções de vereador do Urbanismo na Câmara de Lisboa desde 2007 e assumiu, nessa altura, o compromisso público de que aquele atelier não submeteria qualquer projecto à apreciação da autarquia enquanto ele ali exercesse funções.

Manuel Salgado, que é primo direito de Ricardo Espírito Santo Salgado, antigo dono do BES, negou haver qualquer contradição entre este compromisso e o facto dos dois projectos serem do Risco: “O projecto do estacionamento, tal como o da alteração do hospital, constituem ampliações ao projecto inicial e não um novo projecto”.

Em 2009, quatro anos antes de submeter à câmara estes dois projectos, a ESUS já lhe apresentara um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de construir mais um piso no hospital, com um total de 4591 m2. Este estudo prévio não é da autoria do Risco.
Os técnicos camarários declararam que o acrescento de um piso contrariava o disposto no PPEULB, pelo que propuseram o indeferimento do pedido.

Em 17 de Outubro de 2009, a ESUS dirigiu uma exposição a António Costa onde afirmava que, ao apresentar o pedido de ampliação, “estava plenamente consciente que, no presente contexto de regulamentação urbanística, o projecto só poderia ser aprovado com determinados pressupostos de verificação futura”. E solicitava que se desse “início ao procedimento de revisão do PPEULB (...) de modo a acautelar a superfície de pavimento necessária à aprovação do projecto preconizado [aumento de um piso]”.
Portanto, a empresa reconhecia a incompatibilidade da ampliação com as regras do plano em vigor, mas defendia a sua aprovação, condicionada à futura alteração daquelas regras.

António Costa indeferiu o pedido de informação prévia, em Dezembro de 2009, depois de Manuel Salgado se ter considerado impedido de se pronunciar sobre ele. Todavia, o autarca determinou, conforme proposto por Jorge Catarino, o encaminhamento da exposição da ESUS para o Departamento de Planeamento.

A revisão do plano estava a decorrer há algum tempo. Para 25 de Novembro desse ano esteve, aliás, agendada a aprovação dos respectivos termos de referência, ou seja, os objectivos visados pelo município com a revisão. Nesse documento, que acabou por não ser levado à reunião de câmara, referem-se com algum detalhe as mudanças a introduzir no plano. Não há, porém, qualquer alusão ao Hospital da Luz, nem ao novo parque de estacionamento que este já então pretendia construir.

Quatro meses depois, no fim de Março de 2010, a câmara aprova uma nova versão dos termos de referência. No entanto, a ampliação do hospital e a criação do novo parque continuam a não figurar nesses documentos.

Tem início, então, o procedimento formal da alteração do plano, sendo aberto, em Junho de 2010, o período de três semanas previsto na lei “para formulação de sugestões por qualquer interessado”.
É nessa altura que as pretensões da ESUS de construir mais um piso — bem como as de erguer um novo parque de estacionamento subterrâneo num lote municipal e ainda a de ampliar o hospital para o espaço contíguo do quartel dos bombeiros municipais — acabam por ser integralmente transpostas para os documentos preparatórios da revisão do PPEULB.

Sob o título “Extensão do Hospital da Luz (lote 40)”, estes documentos diziam que “em área reservada para equipamento, embora não constante da programação de equipamentos em Plano Director Municipal, passa a estar prevista a construção de uma extensão do Hospital da Luz, com a demolição das actuais instalações do Regimento de Sapadores Bombeiros”. Mais se dizia que a superfície de pavimento máxima a construir seria 29.164 m2, num edifício entre seis e dez pisos.

A nova versão do plano acabou por só ser aprovada pela assembleia municipal no fim de Julho do corrente ano, no meio de enorme controvérsia. Por imposição da sua presidente, Helena Roseta, a câmara viu-se obrigada a suprimir do plano a intenção de demolir o quartel de bombeiros, passando a constar que será objecto de “uma eventual transferência para o lote 30”.
No entanto, o plano não só viabilizou as obras já aprovadas, como também passou a incluir a ampliação do hospital com mais um piso até 5000 m2, tal como a ESUS pedira em 2009.

O PÚBLICO perguntou à câmara municipal de Lisboa se esta sucessão de factos, juntamente com outros ligados à própria construção do hospital, entre 2005 e 2007, significa que o planeamento daquela área da cidade tem sido feito em função do grupo económico proprietário do hospital. “A CML não vai emitir posição perante as apreciações/opiniões descritas”, foi a resposta do gabinete de imprensa da autarquia.

*

A resposta é óbvia para os comentadores habituais do jornal:

OldVic

02/10/2014 08:28
Por onde começar? Que liberdade tem um técnico que esteja a estudar uma revisão do plano para fazer o seu trabalho se o dirigente máximo da autarquia já tiver decidido aprovar uma obra ilegal à luz do plano existente?
Saúdo a coragem dos técnicos que levantaram objecções, mas não me surpreende que os seus superiores hierárquicos tenham contrariado essas objecções: eles sabem de quem depende a sua continuação nos cargos de chefia. Pensar-se que por ser subterrâneo, um parque de estacionamento não deve ser cuidadosamente avaliado, leva aos problemas ilustrados há pouco tempo atrás com as inundações em Lisboa, por perturbação dos escoamentos no subsolo.
É de um ridículo inacreditável aceitar que o projecto seja actualizado à posteriori em função do que o construtor for fazendo em obra: quem é a autoridade de gestão territorial, a câmara ou o promotor?
Termino dizendo que conheço muitos mais exemplos desta submissão do poder político aos interesses privados, que Lisboa está longe de ser caso único e que os exemplos existem em todos os campos partidários. Alguns dos autarcas que enchem a boca com a proximidade aos problemas das populações esquecem-se de referir que também enchem os bolsos aos compadres à custa do interesse público, e é natural pensar que não o fazem só por amizade desinteressada.

João Pimentel Ferreira
A Haia 02/10/2014 10:54
Está tudo em família! Se os tipos que fazem os planos são os mesmos que aprovam as obras, podem-se perfeitamente aprovar obras, pensando de antemão que se alterarão os planos futuramente, para as contemplar dentro dos planos. Toda a gente sabe que em Portugal funciona assim.
  • José
    02/10/2014 14:27
    Mais que isso, arqº Manuel Salgado, vereador da CML com o pelouro do urbanismo e amicíssimo de Costa, é primo direito do dono (ou ex-dono) do hospital da Luz, o dr. Ricardo Salgado do BES, GES, etc, o famoso DDT.


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