segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Retratos da nossa gente


Em Portugal quem mais ordena é a “cunha”, o amiguismo, o nepotismo e o clientelismo. Não se consegue um emprego ou uma promoção por mérito próprio, mas só quando se tem amigos ou familiares bem posicionados ou se pertence a um grupo privilegiado.

É o que sabemos por experiência própria e o que diz o artigo "O estado da meritocracia em Portugal", cuja leitura se recomenda. Nele se descreve uma sociedade que prefere desperdiçar recursos humanos e empobrecer do que mudar a sua mentalidade retrógrada. E a descrição é entremeada com retratos da nossa melhor gente, como se resume:


Alberto tinha a certeza de que o lugar seria seu. Ninguém, na empresa, tinha as competências e o talento dele, ninguém trabalhara tanto. Os comentários dos clientes confirmavam a sua convicção de que seria ele a entrar no quadro da agência de design onde há dois anos trabalhava a tempo inteiro, a recibos verdes. Dos três colaboradores, só ele cumpria horários, respeitava prazos, atingia padrões de qualidade verdadeiramente profissionais. A empresa não poderia dar-se ao luxo de o dispensar, mesmo que quisesse. Vários contratos em curso dependiam do seu contributo. Ele sabia-o, todos o sabiam. Naquele momento, Alberto era indispensável à empresa. Ao fim de dois anos, um dos três colaboradores, como fora prometido, entraria para o quadro e seria ele. Só podia ser ele.

Alberto sempre pensou que só precisaria de uma oportunidade. O difícil era entrar nalguma empresa, ou instituição, onde o deixassem mostrar o seu valor. Isso demorou vários anos, desde que terminou a licenciatura em Design pelo IADE. Mas quando conseguiu colaborar com esta agência, por recomendação de um professor, encheu-se de autoconfiança. Agora, nada o poderia deter. Seria excelente em tudo o que fizesse, criativo, engenhoso, diligente, irrepreensível.

“Nestes dois anos, fiz o que me pediram e muito mais”, diz Alberto. “Ultrapassei sempre os objectivos e as expectativas. Sentia que as coisas dependiam apenas de mim, portanto era para mim que trabalhava. Não pensava na recompensa imediata, mas no futuro. Empenhava-me, reflectia, estudava, trabalhava pela noite dentro. Era impossível fazer melhor. Fiz disso o meu lema: ninguém poderia fazer melhor. Dessa forma sentia-me livre, independente. Aos comandos da minha própria vida.” Não podia falhar. “Se a sociedade era justa, eu tinha de vencer. E uma pessoa justa acredita sempre que a sociedade é justa.”

Um dos outros colaboradores era amigo e antigo colega de escola do dono da agência. No dia da grande decisão, foi ele o escolhido. Alberto foi chamado para uma explicação sumária: o outro era de “mais confiança”, estava mais “dentro da lógica da agência”.

João Bilhim, professor catedrático de Gestão de Recursos Humanos no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e presidente da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP), explica a diferença entre Administração Pública e sector privado, na perspectiva do seleccionador:

“No sector privado, o profissional de selecção tem de justificar muito bem os motivos da sua escolha. Os três nomes que apresenta ao cliente têm de ser muito bem justificados na sua relação com o perfil. No sector público, passa-se precisamente o oposto: todo o empenho tem de ser colocado na justificação dos candidatos que não foram escolhidos.

Não se corre risco, desde que a afirmação seja fundamentada, em afirmar que um candidato possui a ‘humildade’, a ‘agradabilidade’ necessárias ao desempenho do perfil definido. Mas, pelo contrário, se eu afirmar que um candidato não possui tais capacidades, corro o risco de ser processado por difamação.

A Administração Pública e os seus órgãos de controlo laboram a partir do princípio da desconfiança. Assim, não raras vezes, admito que o profissional da selecção tenha de colocar no prato da balança a seguinte opção: escolher o candidato mais próximo do perfil ou aquele que menos probabilidade terá de nos trazer problemas com os tribunais administrativos.”

Portanto, para além de saber aplicar as regras objectivas, gerais e universais dos processos de selecção, Bilhim defende que o seleccionador deve ter uma sólida formação ética.


Carla candidatou-se por três vezes a uma bolsa de doutoramento pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). “A primeira recusa foi uma desilusão, não recebi bolsa por um cabelo: atribuíram 12 bolsas. À ínfima distância de 0,02 centésimas estava eu na 13.ª posição. Entretanto, mesmo sem a bolsa tão desejada e que tanta falta me fez, fui ao banco, pedi um empréstimo e abalei para Inglaterra com a ideia de fazer mais currículo, o que, no fim de mais um ano lectivo, se materializou numa pós-graduação e numa série de conferências proferidas em universidades inglesas. Foi com renovada confiança que me atirei à segunda tentativa.”

Mas correu ainda pior. O seu nome tinha descido várias posições, apesar de ter obtido pontuação máxima no critério “unidade de investigação” e quase máxima no “relevância do projecto”. Já o critério “mérito pessoal” teve nota negativa, muito inferior à obtida (positiva) no primeiro concurso. “Em dívida e com os bolsos praticamente vazios, agora eu mesma valia muito menos do que no ano anterior”, diz Carla. “Estava perplexa: o meu projecto era excelente, mas aparentemente eu não era a pessoa certa para o levar em diante. Então escrevi ao director dos serviços e foi-me dada autorização para aceder aos CV e aos projectos dos candidatos premiados. Só depois de ter constatado certas estranhezas nas avaliações dos processos é que me senti verdadeiramente indignada e esmagada.”

Carla viu que, no top 10 das poucas bolsas atribuídas a nível nacional, havia duas pessoas da mesma família, um nome muito conhecido da elite portuguesa. No caso de uma dessas pessoas, o projecto e o interesse do projecto obtiveram pontuações inferiores aos seus. Mas, em “mérito pessoal”, a socialite teve nota superior. “Percebi que a minha nota de mérito teve de ser diminuída para que alguém figurasse na lista final dos felizes contemplados. Na terceira e última vez que concorri, a recusa foi recebida com indiferença — tinha perdido toda e qualquer confiança naquela instituição.”

Para João Cardoso Rosas, professor de Filosofia Política da Universidade do Minho, a ideia de sociedade aberta ao mérito, e não apenas ao nascimento e condição, nasceu na Revolução Francesa. “Até então, as funções estavam ligadas à aristocracia, sendo o mesmo princípio aplicável aos ofícios, o filho do sapateiro também seria sapateiro. Era uma lógica monárquica, segundo a qual é natural que os filhos sucedam aos pais, porque são preparados para isso”, acrescenta.
Desde então, a meritocracia foi aplicada na Europa e Estados Unidos para “permitir um melhor aproveitamento dos talentos. Porque há talentos inatos, que apenas se encontram se todos forem tratados como iguais. Há um argumento ético para defender isto, mas também um argumento económico. No regime tradicional, há talentos que se perdem”.

As sociedades desenvolvidas são meritocráticas. Persistir em práticas arcaicas, como sucede em Portugal, é uma desvantagem competitiva e tem um custo elevado. No século passado, como os índices de alfabetização eram baixos, a situação passava despercebida. Hoje, com a proliferação de licenciaturas e mestrados, a frustração é enorme quando se constata que a meritocracia não funciona:
“Os meus alunos queixam-se de que de nada lhes serve esforçarem-se, serem bons nos estudos, se os pais não têm um nome sonante. Os jovens formados com mais capacidades não têm oportunidades e são obrigados a emigrar. Fogem para países cujas sociedades são mais meritocráticas.”

No entanto, os empresários do sector privado procuram usar a palavra meritocracia para dar um ar de modernidade. “Os do privado têm, mais do que no público, um discurso meritocrático, mas não o praticam”, diz João Rosas. “Há um desfasamento entre o discurso e a prática. Na realidade, há mais meritocracia no sector do Estado, onde existe maior transparência, obrigatoriedade de concursos, etc. O Estado está mais próximo dos valores constitucionais, faz um esforço maior. E há mais escrutínio.”

No sector privado, há que distinguir o mundo das grandes empresas do das pequenas e médias. Nas PME reina a base familiar e o sistema das confianças pessoais e “como o peso das PME é enorme na economia portuguesa, o custo global dessas práticas de recrutamento é muito significativo”.

Mas no interior das grandes empresas “o discurso meritocrático é muitas vezes um discurso ideológico, que visa encobrir práticas de clientelismo, familiar e político”, diz João Rosas.
“Os exemplos são trágicos. É impressionante verificar como os mesmos nomes de família aparecem repetidamente nas administrações e lideranças. Nos conselhos gerais das empresas, chega a ser risível. Na EDP, por exemplo. Há pessoas que não fazem nada, e são muito bem pagas por isso. É uma forma de pagamento feito aos poderes familiares, políticos”, prossegue João Rosas.
“Acho que essas práticas não compensam, mas eles acreditam que sim. Acham que ficariam em desvantagem se não procedessem assim. Em Portugal, ainda há a convicção de que ter uma linha telefónica directa para o primeiro-ministro é uma grande vantagem. Mas talvez isso não seja verdade.”

João Gonçalves, professor de Sociologia na Universidade Nova de Lisboa e administrador executivo da SDO, uma empresa de consultoria e gestão de talentos, afirma que as práticas meritocráticas começaram nas empresas multinacionais:
“Até aos anos 70, antes da crise do petróleo, as multinacionais viviam à grande. Mas depois tiveram de mudar. Hoje funciona a meritocracia, seja onde for que operem. Até em África é assim. O preço da má selecção de pessoal é muito grande.”

Em Portugal, a chegada das grandes multinacionais ocorreu a partir dos anos 1980, como as companhias petrolíferas e as farmacêuticas, e as grandes empresas portuguesas adoptaram o regime meritocrático das multinacionais.
Mas não em todos os níveis, há excepções: “Não propriamente nas administrações, mas ao nível de director, todas as grandes empresas empregam filhos de ministros, de presidentes.” É o ónus que têm de pagar para funcionarem num país de tradição clientelar. “É preciso agradar ao poder político. Ao nível da elite, todos se conhecem e vivem da troca de favores.”

Ao nível das PME reina o clientelismo, o nepotismo e o amiguismo. “O país funciona a quatro ou cinco velocidades. Em muitas PME, as decisões tomam-se na família, de dedo no ar, os directores são escolhidos por serem da família, rodeiam-se de incompetentes, como no início do século passado.”
Para além da ausência de formação professional e de uma cultura de gestão, estas empresas têm de relacionar-se com os líderes do poder local, aceitando a corrupção e o compadrio, e inserir-se socialmente no meio: “As pequenas empresas do interior têm de corresponder às expectativas das pessoas. Têm de dar emprego aos filhos da terra”, respeitando a hierarquia das famílias.

A gestão baseada no mérito é fundamental para o desenvolvimento económico, mas é difícil de aplicar devido a estruturas mentais e práticas consuetudinárias muito enraizadas, mesmo nas grandes empresas, geralmente ao nível dos quadros intermédios, que se traduzem por manifestações de amiguismo e nepotismo, rivalidades, manipulações e vinganças.
João Gonçalves explica que “a mudança nas empresas faz-se geralmente de cima para baixo. Hoje, quem rola nunca é em cima. E ao nível médio, o middle management, há muitas vezes poderes instalados”. A esse nível desenrola-se uma luta sem regras nem quartel.
A relação entre esses quadros intermédios e os que lhe estão imediatamente abaixo é frequentemente despótica. “Há os que pensam: não vou ensinar nada a este, senão ele tira-me o lugar”, diz João Gonçalves. E cita a empresa Pão de Açúcar que tinha uma regra para a nomeação de um director onde exigia ao visado a apresentação de uma lista com três nomes de pessoas que o poderiam substituir. Hoje, diz, nenhuma empresa consegue impor esta regra.

Frederico Cardoso, que é quadro intermédio de uma grande empresa portuguesa, explica que se bloqueia a circulação da informação:

“Quem toma as decisões sobre pessoal, de promoções e atribuição de altos cargos, é a administração. Mas fá-lo segundo a informação que lhe chega e que é filtrada pelos quadros intermédios. Estes deturpam os dados, por forma a que nenhum resultado brilhante dos seus inferiores chegue ao conhecimento dos superiores.

Alguns desses directores vieram de baixo, conquistaram um lugar muito razoável em termos financeiros e de prestígio e não estão dispostos a perder isso. Fazem o que for preciso para manter a sua posição. Na nossa empresa, não há avaliações credíveis. A única forma de ascender é através do relacionamento pessoal com algum administrador. Todos lutam por esse acesso e contra a possibilidade que outros o obtenham.”

Se, nos níveis inferiores da empresa, surge alguém com capacidades extraordinárias, “encostam-no logo. O que ele tem de fazer é sair para outra empresa ou montar a sua”. Para contrariar esta mentalidade, a empresa fez uma experiência de promoções em ziguezague, com a ascensão a fazer-se sempre para outro departamento. No mesmo, quem ultrapassar o superior imediato sofre represálias.


Maria é professora do ensino secundário há 20 anos. Na expectativa de progredir na carreira, matriculou-se num curso de mestrado, que concluiu com média final de 18 valores. Mas entretanto as carreiras docentes foram congeladas. E as funções de mais interesse e responsabilidade existentes na escola são distribuídas pelo director de forma discricionária.

Não se trata de ganhar mais dinheiro, mas apenas de cargos, como o de coordenador de departamento ou de projectos do conselho pedagógico, que conferem prestígio e um quotidiano mais estimulante. Pois todos os anos o director atribui esses cargos a quem quer, sem ter em conta o facto de alguns colegas terem mestrados ou doutoramentos. “A formação que fizemos, totalmente à nossa custa, não conta para nada. Apenas conta a opinião do director, que se baseia nas suas simpatias pessoais”, diz Maria.

Dantes, os directores das escolas eram eleitos, bem como os titulares de cargos de chefia. Agora, o director é nomeado, e ele próprio nomeia. “Não há legislação nenhuma que diga que deveriam ser escolhidas as pessoas de acordo com a sua formação. Por isso o director faz o que quer. Distribui os melhores cargos, os melhores horários, as melhores turmas pelos seus amigos. É claro que quem quer ter uma vida um pouco melhor tenta fazer-se amigo do director.”

São causas históricas e culturais que explicam a prevalência do clientelismo e amiguismo em Portugal, tal como nos outros países da Europa do Sul, enquanto nos países do Norte predomina a meritocracia.
Bilhim separa os países europeus de acordo com os hábitos alimentares em Europa do azeite e a Europa da manteiga, mas o que pode justificar este comportamento diverso são as respectivas tradições católica e protestante. A dimensão dos países não poderá, pois a Holanda é meritocrática e a Itália é clientelista.

“A Europa das oliveiras é mais sensível à ‘cunha’, ou seja, aos valores da família e dos amigos, que a da manteiga, ou a Europa do Norte, onde a racionalidade parece prevalecer. No Sul, damos prioridade ao eu, depois à família e por fim aos outros. No Norte, primeiro vêm os outros, depois a família, por fim o eu”.


Catarina, professora de Psicologia, foi convidada para trabalhar num grande hospital privado pertencente a uma instituição religiosa. Como lidava com muitos casos de obesidade, dedicou-se ao estudo dessa área, incluindo a investigação para a sua tese de doutoramento. Abriu um serviço de consultas de psicologia de obesidade no hospital.

Como teve muito êxito, e as consultas eram pagas à hora, o hospital propôs-lhe pagar um salário fixo, ainda que sob regime de recibos verdes. Durante dois anos, Catarina cumpriu horários, desenvolveu um serviço de tão grande sucesso que, em 2008, a direcção do hospital lhe apresentou uma outra psicóloga, para a ajudar, em regime de estágio profissional.

Passaram a ser duas psicólogas, embora Catarina fosse considerada a responsável, assinando todos os documentos, etc. A estagiária era no entanto sobrinha do director clínico do hospital e filha de médicos ligados à instituição religiosa proprietária do hospital. “Dê cumprimentos aos seus pais”, ouvia-se frequentemente nos corredores, à passagem da estagiária.

Um dia, em 2011, Catarina foi chamada de súbito à direcção, para ser informada de que, devido aos cortes orçamentais, decidira-se reduzir a equipa de psicólogos para um elemento, e a escolhida fora a estagiária. Catarina ficou em choque. Reagiu emocionalmente (demasiado, acha hoje), pensou que fora ela a construir todo o serviço, chorou. Nem teve tempo para protestar, ouviu apenas: “Sinto muito, a decisão está tomada.”


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