terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Príncipe - I


Eram 9:07 quando Ricardo Espírito Santo Salgado entrou na sala onde ia ser inquirido pela Comissão de Inquérito parlamentar à gestão do BES-GES, acompanhado por assessores e pelo seu advogado, Francisco Proença de Carvalho.

Era a sua primeira intervenção pública desde que deixou a presidência do Banco Espírito Santo (BES), desde que o Banco Espírito Santo (BES) desapareceu e desde que foi constituído arguido no processo Monte Branco por suspeita de evasão fiscal, burla e corrupção.

Ricardo Salgado começou por citar um provérbio chinês: “O leopardo quando morre deixa a sua pele e um homem quando morre deixa a sua reputação.”


Em seguida, durante cerca de hora e meia, leu um longo depoimento sobre a sua versão dos factos que levaram ao desaparecimento do Banco Espírito Santo (BES), o segundo maior banco privado português, que era controlado por um intrincado sistema de holdings sediadas no Luxemburgo:


09/12/2014 - 12:17

Peço e agradeço a Vossa compreensão para o tempo que esta minha intervenção inicial vos tomará.

Neste momento cabe‐me apenas enunciar os factos que antecederam a situação vivida até 13 de Julho, data em que cessei as funções de membro do Conselho de Administração do BES e de Presidente da respectiva Comissão Executiva.

Ficará para mais tarde a minha interpretação dos mesmos. E para a História, o juízo definitivo sobre o acerto das actuações do poder político e regulatório, que é constitucional e legalmente o objecto da competência da Assembleia da República.
(...)

Durante semanas e meses a fio, a minha família e eu próprio fomos julgados sumariamente na opinião pública com acusações de ilegalidades, de fugas em escassas semanas de centenas de biliões de euros destinados a enriquecer‐nos em off‐shores, de fortunas pessoais escondidas na Ásia, de mansões em Miami e de castelos na Escócia.

Tudo histórias totalmente falsas mas que acabaram por ocultar a verdade dos factos.

Em 22 anos de presidente da Comissão Executiva do BES, terei certamente tomado decisões que poderão não ter sido as mais adequadas.

Mas quero acreditar que os meus últimos seis meses e treze dias à frente do Banco – qualquer que seja o juízo formulado – não são mais reveladores sobre a acção das equipas que liderei do que um histórico de 22 anos, nacional e internacionalmente reconhecido e o exercício da profissão durante mais de quarenta anos, dezoito dos quais no estrangeiro.

Depois destaca que a crise do GES não se pode dissociar da crise que afectou, desde 2007, a economia mundial, a economia europeia e, naturalmente, a "frágil economia portuguesa". E recorda o colapso do Lehman Brothers, aproveitando para criticar a actuação do governo dos EUA por não dado apoio financeiro ao banco norte-americano:

O caso Lehman — banco de investimento especializado e global, mas pequeno em termos da economia norte-americana — teve efeitos devastadores que hoje motivam, generalizadamente, juízos críticos que recaem sobre a actuação dos reguladores e dos supervisores, à época.

E também sobre a omissão do Governo dos EUA que preferiu não intervir, por considerações políticas, assim detonando uma crise sem precedentes que o forçaria depois a lançar triliões sobre a economia.

Nomes tão diversos como Tim Geithner, Paulson, Kaletsky e Martin Wolf apontam a falência do Lehman como uma decisão com consequências trágicas, designadamente a nível do risco sistémico.

O que se passou com o Lehman deve ser retido na evocação do percurso do BES, pois este, embora centrado na economia portuguesa, tinha um peso relativo maior nesta — com cerca de 20% de quota de mercado; 2 milhões de clientes no retalho; 25,5% de quota nas empresas e 30% de quota no comércio externo.

Recorda previsões falhadas da OCDE para os países da periferia da zona euro, lembra projecções do FMI e cita a descida dos ratings da República iniciada em 16 de Março de 2011 pelas agências de rating, e a sua colocação pela Moody´s, em 5 de Julho, dois níveis abaixo do nível de investimento, com "consequências imediatas: a paralisação dos fluxos de capital do exterior que deixaram de investir na dívida pública portuguesa, na dívida dos bancos e na dívida privada em geral, determinando a queda da Bolsa de Valores e a quebra acentuada do investimento imobiliário, acarretando uma drástica desvalorização dos activos das empresas e das instituições de crédito."

E criticou o Governo e a troika por não aceitarem, das medidas então propostas pelos bancos, "senão a transferência para o Estado de liquidez correspondente a cerca de 50% dos Fundos de Pensões e mesmo essa sem que a Comissão Europeia autorizasse o Estado a cumprir, nos termos fixados, a obrigação assumida de recomprar aos bancos os créditos sobre o próprio Estado e autarquias".

Até que lança uma pergunta, para poder enumerar as várias emissões de dívida e aumentos de capital do banco e explicar porque não recorreu aos fundos da troika:

Mas como é que o BES viveu os anos da crise em 2012 e 2013? Conseguiu romper o fechamento dos mercados internacionais e colocar dívida.
(...)

O que fica dito – com dez aumentos de capital desde 1992 e acesso ao mercado externo em 2012 e 2013 – explica a escolha de não recorrer à recapitalização por meio da ajuda do Estado com fundos da Troika.

O BES conseguia obter capital e crédito sem diluir o capital, pois: recorria ao mercado, com preferência para os accionistas; trazia mais capital externo para Portugal; e não contribuía para a dívida pública.

E sobretudo podia fazê-lo porque quase não tinha a exposição à dívida grega, italiana e irlandesa, como sucedera com bancos nacionais.

Estas as razões da escolha feita. E não — como tem sido dito — por temer que a intervenção do Estado desvendasse segredos, manobras ou situações questionáveis.

Depois passa a narrar a sua versão dos acontecimentos ocorridos nos últimos meses, começando pela descoberta do buraco financeiro de 1300 milhões de euros na Espírito Santo International (ESI), a holding de topo do GES:


09/12/2014 - 10:15

A partir do início do novo século, e sobretudo a partir de 2007‐2008, reconheço, como já o fiz publicamente, problemas de organização, de financiamento, de perfis de gestão e de controlo de um Grupo essencialmente concentrado na área financeira.

Um grupo que necessitava de encontrar novas estruturas e novos modelos de governação para a área não financeira.

Em 2009, na ressaca da crise mundial, foi criada a RIOFORTE, com um capital de 1,3 mil Milhões de €, pensada para ser a holding única da área não financeira e cotada na Bolsa.
(...)

O agravamento da crise em 2011, retardou a cotação em Bolsa e atingiu, especialmente em 2012 e 2013, a área não financeira, dificultando a reconversão de uma realidade muito diversificada e geograficamente dispersa.

Na área não financeira, há que dar especial enfoque ao problema descoberto na ESI, no âmbito do Exercício Transversal de Revisão das Imparidades dos Créditos Concedidos (designado por ETRICC), iniciado pela PWC, em 14 de Outubro de 2013, e concluído em 14 de Março de 2014 .

Esta auditoria envolveu uma interacção das equipas do GES e do BES que disponibilizaram toda a informação à PWC. Fruto desta interacção, em finais de Novembro de 2013, foi reportado que haveria um passivo não registado na ESI.

Esta circunstância afectava, naturalmente, a dívida directa e indirecta do Grupo, em parte titulada por papel comercial colocado no mercado nacional e internacional.

Ao tomar conhecimento deste problema, eu próprio, todos os órgãos do Grupo, bem como a equipa financeira do Banco, encarámos as dificuldades da sua superação, e de forma consciente e realista procurámos as soluções adequadas.

Ainda nesta altura foi também solicitada à ESFG, a pedido do BdP, que fossem preparadas demonstrações financeiras consolidadas proforma da ESI, com referência a 30 de Setembro de 2013, e que as mesmas fossem objecto de análise por auditor externo, a KPMG.

O Conselho Superior [formado pelos representantes dos cinco ramos da família Espírito Santo], na tarde de 3 de Dezembro de 2013, reuniu com o BdP para discutir a situação financeira da ESI e apresentou propostas para uma resolução de curto/médio prazo.

Nessa reunião, os representantes do BdP ouviram‐nos e saímos dela com a sensação de que as soluções propostas iriam ser analisadas com ponderação, para posterior desenvolvimentos e negociações, com vista a proteger os interesses de todas as partes envolvidas, em especial dos investidores e dos clientes do Banco.

Ora, no próprio dia, e passadas cerca de 2 horas, por carta recebida pelas 19h, o Senhor Vice-Governador do Banco de Portugal impunha o reembolso de todo o papel comercial até ao fim do mês de Dezembro — ou seja, em escassas semanas —, sob pena de constituição de uma provisão.

Em face da óbvia inexequibilidade de tal exigência, o Grupo concentrou-se num plano para resolução da situação, consciente dos riscos reputacionais resultantes da deterioração ou da percepção de deterioração da posição financeira da ESI.

Esta situação de sobre-endividamento traduzia, também ela, os efeitos da crise na área não financeira, carecida de um plano rápido e eficaz para garantir a sua viabilização, salvaguardando sempre a área financeira.
(...)

Em 10 de Dezembro de 2013, a ESFG apresentou um Plano ao BdP, através de carta dirigida ao Senhor Vice-Governador do BdP.

Prossegue a narrativa, descrevendo o Plano de Recuperação então proposto para o GES que pressupunha um apoio financeiro ao grupo de 2500 milhões de euros:

Depois de uma análise que foi muito ponderada — já que ela exigia, além de dados firmes, a convergência de todos os ramos do Grupo e o acordo de sócios estrangeiros, como o Crédit Agricole, em algumas das suas componentes — acertou-se um Plano de Recuperação, com os seguintes pontos essenciais:

• Objectivo central: reduzir a área não financeira, reforçar a sua sustentabilidade e, acima de tudo, continuar a proteger o que estava em primeiro lugar, os direitos dos clientes e dos accionistas do BES e também da ESFG;
• Prazo de execução: cinco anos. Muito menos do que os 31 anos de pagamento da dívida pública previstos no quadro do Memorando para Portugal;
• Acções:
1ª: aumentar o capital do BES, a fim de respeitar Basileia III e reforçar a posição do Banco junto dos clientes e accionistas;
2ª: aumentar o capital da RIOFORTE, bem como da ES IRMÃOS, através de capitais que estavam disponíveis para serem investidos por terceiros, ficando o conjunto destas duas holdings com 100% da ESFG e dando tempo para a venda de posições da área não financeira.
RIOFORTE e ESI tenderiam a fundir-se no final do processo;
3ª: venda de activos e de participações não estratégicas na área não financeira, sem ser em velocidade tal que fizesse cair a pique o valor desses activos.
(...)

Antes, porém há ainda uma questão prévia que se impõe: seria o GES efectivamente viável, que justificasse a elaboração de um Plano de Recuperação?

Ou essa recuperação seria só o salvar de uma Família e dos seus aliados, à custa dos outros?

A resposta está no ETRICC, ou seja na auditoria que a PwC realizou, a pedido do BdP, à área não financeira do GES e que finalizou em 14 de Março de 2014.

No referido documento, a PwC concluiu que o GES era económica e financeiramente viável e a dívida sustentável num prazo até 2023.
(...)

E a PwC confirma, no mesmo relatório, que o valor da RIOFORTE era de 1.708 M€, mesmo com a provisão de 700 Milhões de € na ESFG, de que adiante se falará e que foi determinada pelo BdP.

A mesma auditoria, a páginas 32, concluiu que a RIOFORTE não tinha qualquer imparidade.
(...)

Em 31 de Dezembro de 2013, a exposição do BES ao GES era de 1,9 mil M€, atendendo ao papel comercial do GES colocado em clientes do BES.

Em face do que o BdP definiu o chamado «ring‐fencing», ou barreira protectora, determinou uma provisão de 700M€ de acordo com a KPMG a ser registada na ESFG e uma acelerada redução da exposição, com reembolso do papel detido pelos clientes — observe-se que a PWC entendia inicialmente que uma provisão de 400M€ seria suficiente.

O GES, e em especial o BES, foram tentando enfrentar ao mesmo tempo quatro desafios:
• 1º: Realizar o aumento de capital do BES;
• 2º: Preparar e lançar o aumento de capital da RIOFORTE e recorrer a uma linha de crédito de médio prazo intercalar no montante de 2,5 mM€ — que não fosse financiada pelo Grupo ESFG;
• 3º Acelerar as vendas na área não financeira; e
• 4º reembolsar rapidamente papel comercial do GES, colocado pelo BES.

Tudo num clima mediático de permanente debate acerca do Grupo, do banco, da supervisão, de visões superficiais que reduziam a realidade à identificação do GES como um conjunto de empresas não viáveis, à separação teórica entre clientes do GES e do BES e à ideia de que a resolução de todos os problemas passaria pela discussão da liderança do Banco.

Ricardo Salgado passa a esmiuçar o relacionamento do BES com o BdP, no qual distingue duas fases. Na primeira, o BdP iniciou um processo de pressão no sentido da mudança de gestão do BES:


09/12/2014 - 10:23

A primeira de Dezembro de 2013 a Março de 2014 é marcada pela exigência da provisão de 700 M€, pela imposição do reforço do capital do BES, pela carta de 25 de Março, e pela intensificação do reembolso do papel comercial do GES colocado no BES.

Esta intervenção acrescentou‐se à supervisão permanente do BdP no BES, já anteriormente estabelecida.

Foi como se imagina uma fase muito difícil para o BES e para o GES, patente, designadamente, na correspondência trocada, mas em que foi possível, com um esforço considerável, reduzir a exposição do Grupo aos clientes do BES em mais de mil milhões de euros, num período de apenas 5 meses — como aliás foi aqui reconhecido pelo Senhor Governador do BdP.

Isto enquanto os activos do Grupo e do Banco sofriam pela repercussão mediática de cada passo, de cada diligência, de cada divergência pontual.

Por outro lado, e a par das iniciativas que o GES e o BES estavam a realizar com vista a resolver os problemas a que me referi, o BdP, de forma vaga e imprecisa, iniciava um processo de pressão — que o Senhor Vice-Governador designou por “persuasão moral” — no sentido da mudança de governance do BES.

Esta “persuasão moral” verificou-se mais pelas notícias, comentários e juízos de valor surgidos na imprensa, do que por indicação que nos tivesse sido directamente transmitida pelo BdP.

Quero deixar bem claro que era minha firme intenção preparar um novo modelo de governance com a minha saída de funções executivas do BES.

Aliás, o Senhor Governador disse-me de forma clara que desejava, para manter a estabilidade do Grupo BES, que fosse eu próprio a liderar essa transição e a mudança de governance.

Assim, solicitei ao Dr. Rui Silveira e ao Dr. Daniel Proença de Carvalho que fosse elaborado um projecto de alteração dos Estatutos, para uma nova governance do Banco, a propor ao BdP e a submeter a uma posterior Assembleia Geral, naturalmente, a realizar após o aumento de capital do Banco e com vista à minha saída da Administração Executiva.

Em conversas tidas com o Senhor Governador, foi-me manifestado o desejo do BdP de que a mudança de governance e a saída da família dos órgãos de Administração ocorresse ainda antes do aumento de capital.

O que eu considerei imprudente e mesmo de risco elevado.

Em 31 de Março, enderecei uma carta ao Sr. Governador do BdP, apontando pela terceira vez o risco sistémico que derivaria de uma ruptura desordenada na Administração do Banco, em vez de uma transição controlada que salvaguardasse a confiança do mercado, que até aí se mantivera, tal como veio a confirmar-se pelo sucesso do aumento de capital.

Nessa carta reafirmei textualmente o seguinte, cito: “Quero dizer claramente a V. Ex.ª que estou inteiramente disponível, no quadro de um saudável e cooperante relacionamento com o BdP, para encontrar uma solução construtiva de Governance, com forte incidência numa maior profissionalização e independência executiva do Banco. Não serei eu que por qualquer motivação pessoal dificultará essa desejável evolução.”

Tal carta é também revelada ao Senhor Presidente da República e ao Governo, na pessoa do Senhor Primeiro-Ministro, que a devolveu, e à Senhora Ministra das Finanças. É igualmente comunicada ao Senhor Presidente da Comissão Europeia.

Nesse momento, optou-se por adiar as alterações de governance para depois do aumento de capital do Banco.

Depois descreve a segunda fase desse relacionamento, entre Março e Junho de 2014, quando decorre a escolha atribulada da futura gestão do BES, voltando a realçar a necessidade de um apoio financeiro estatal ou bancário ao GES e também de um aumento de capital da Rioforte, a holding da área não financeira:


09/12/2014 - 10:22

Desde 3 de Dezembro de 2013 que, antes mesmo do ETRICC 2 e da auditoria da KPMG, o GES havia, por escrito, formalizado a sua preocupação quanto ao risco sistémico derivado da relutância do BdP em entender a importância do Plano de Recuperação.

Os meses seguintes tornaram mais evidente ainda que para além do aumento do capital do BES e da alienação de participações – como as entretanto vendidas na ZON, Sodim e Cimigeste – ou preparadas para tanto como a ES Saúde, a ES Hotéis e a ES Viagens, era indispensável um apoio intercalar ao Grupo, que alguma banca aceitaria encarar mas fazia depender da posição do Governo.
(...)

Nova diligência do GES, em Abril, para sensibilizar para a impossibilidade de reconversão do Grupo em 6 meses e para o risco de contaminação do BES, deparou com a posição inabalável do Governo de rejeitar qualquer abertura a apoio estatal ou bancário ao GES. Fala-se então em montante muito inferior aos ulteriormente referidos após a resolução do BES.

Entre Março e Junho há, pois, uma situação contraditória: por um lado, o BdP e o GES falam de aumento de capital e de alteração estatutária com vista a uma nova gestão; por outro lado, o outro pilar da recuperação do GES e, mediatamente, do BES, ficava como que bloqueado.

E o bloqueamento seria total quando foi inviabilizado o private placement de um Fundo de Investimento Internacional disposto a tomar firme 70% de mil M€ do aumento de capital da RIOFORTE, conforme apresentação em 7 de Maio de 2014 à Comissão Executiva do BES.

Mais: até ao fim, ainda em 12 de Julho de 2014, em carta endereçada ao Senhor Governador, apresentámos investidores internacionais como a Blackstone & Weil que a nosso convite se encontravam em Portugal, que representavam outros investidores, entre eles, o KKR, e que haviam revelado disponibilidade para participar no reforço de capitais.

O Senhor Governador do BdP, no próprio dia 12, não manifestou abertura para receber os representantes daqueles investidores e em carta de 13 de Julho, referiu que concordava com tal solução, mas que haveria de ser apreciada pela nova administração.

Estes factos motivaram o desinteresse imediato dos referidos investidores.


09/12/2014 - 10:59

Todo este exercício dificílimo ocorre no contexto de um clima público intenso e por vezes dramatizador que leva a dois processos sucessivos de escolha da futura gestão do BES.

No primeiro, o CFO e uma Directora Coordenadora merecem aceitação inicial do BdP para CEO e CFO respectivamente, chegando o Senhor Governador do BdP a afirmar-me por telefone “será quem o Senhor Presidente entender”.

No segundo, perante aquele clima, no dia 20 de Junho suscitam-se dúvidas sobre a necessidade de avaliação da idoneidade daqueles gestores, que nunca antes fora questionada e que gozavam de prestígio considerável no sector bancário internacional (o dr. Amílcar Morais Pires, meu colega da comissão executiva, dedicado para CEO, estava há 28 anos no banco, nunca tinha sido questionada a sua idoneidade; a dra. Isabel Almeida era responsável pelo departamento financeiro de mercados e estudos) — sendo certo que haviam estado ligados, com mais um outro administrador executivo, ao sucesso do aumento de capital.

E tudo se adensa com o anúncio de uma auditoria forense, em 2 de Julho – auditoria ainda hoje não terminada.

Estes factos, só por si, desencadeiam nos investidores internacionais, que tinham acabado de subscrever o aumento de capital, em 16 de Junho, uma reação extremamente negativa manifestada numa quebra de confiança e na queda do valor das acções – GRÁFICO.

Isto obriga a ESFG a ter de propor novos nomes para CEO e CFO, nomes esses que viriam a ser aceites pelo BdP e cooptados pela gestão cessante, na última reunião do Conselho de Administração em que participei.

Assumo quer as primeiras escolhas do GES, que viriam a ser afastadas pelo BdP, quer as que lhe sucederam e foram por este aceites. E que transitariam para o Novo Banco.

É agora que Ricardo Salgado refere a questão da garantia dada pelo governo angolano ao BESA:

Quanto à posição do BES perante o BESA: limito-me a invocar as palavras do Senhor Governador neste Parlamento, em 18 de Julho de 2014, ou seja, já uma semana depois da minha saída, cito: “Importa salientar que o BdP não antecipa um impacto negativo relevante na posição do capital do BES resultante da situação financeira da filial do BESA. Tendo em consideração que a garantia do Estado de Angola cobre parte substancial da carteira de crédito e que existe uma forte interacção entre as autoridades de ambos os países, o BdP espera que a situação desta filial seja clarificada e sem impacto material no BES”. Esta declaração está disponível no site do BdP.

Repito: a 18 de Julho de 2014, seis dias depois de eu ter cessado funções.

Assim, a situação do BESA estava assegurada por uma garantia on first demand do Estado Angolano, tal como esclarece o Senhor Governador, que não foi questionada pelo próprio emitente nem até à data da cessação de funções da gestão do BES que obtivera tal garantia, nem até à medida de resolução que destruiu o BES.

Observe-se que o risco da extinção da garantia tinha sido referido na carta de 31 de Março, por mim endereçada ao Senhor Governador.

Outras questões melindrosas — as obrigações EUROFIN e o prejuízo de 3500 milhões de euros relativo ao primeiro semestre de 2014:


09/12/2014 - 10:59

Quanto ao tema das chamadas obrigações EUROFIN: tal como decorre da acta de 30 de Julho de 2014, do último Conselho de Administração, publicada na imprensa, relativamente às emissões de obrigações de cupão zero e prazo longo, verificou-se terem sido gerados ganhos por intermediários na ordem dos 780M€.

De acordo com a intervenção referida nessa mesma acta, da Senhora Dra. Inês Viegas da KPMG, cito: “face ao apurado, a KPMG reuniu com o Dr. Joaquim Goes e Dr. Manuel Freitas e o Departamento Financeiro de Mercados e Estudos, tendo este Departamento, após ter sido confrontado com toda a evidência, informado que as transações em questão foram efectuadas através da EUROFIN e que o valor retido por terceiras entidades foi utilizado para o pagamento de divida do GES detida por clientes do Banco.”
(...)

Peço que me escutem, Senhores Deputados: ninguém da administração do BES, do GES ou da família Espírito Santo obteve qualquer alegado benefício daqui decorrente, ao contrário do que foi repetidamente insinuado em alguns órgãos de comunicação social.

Além disso, o prejuízo registado nas contas e que é apresentado como o prejuízo “record”, detonador da medida de resolução, não corresponde a dinheiro que saiu do BES; a milhões a irem para o estrangeiro ou para off-shores como se escreveu; mas sim a provisões impostas ao Banco, num valor superior a 2MM€, contra o entendimento e a vontade de muitos administradores, tendo, a título de exemplo, um deles, exigido que ficasse registado em acta que considerava tal provisão injustificada e imposta ao Banco.

Marc Oppenheim, indicado pelo Crédit Agricole, pediu que, cito: “ficasse registado na presente Acta que, no seu entendimento, estas provisões traduzem um nível de conservadorismo que se afigura excessivo e que é, de facto, imposto ao Banco, podendo esta circunstância constituir um risco relativamente à percepção que os accionistas terão sobre a situação do Banco.”

A questão da PT ficou para o fim:

Por último quanto à relação do BES com a PT, que nasceu há décadas, da posição de accionista na sua antecessora Marconi, cumpre apontar alguns factos essenciais.

O BES foi accionista importante no impulso da Marconi e, através desta, como financiador no processo de reprivatização e consolidação do universo PT e sua projecção no Brasil, em África e na Ásia.

Desde 2000 e até 2014, existiu uma parceria estratégica entre PT, BES e CGD.

Desde 2002, a PT manteve aplicações de tesouraria no BES e no GES, sempre públicas e divulgadas nos relatórios anuais, submetidos ao parecer da Comissão de Auditoria, ROC e Auditores externos, sem qualquer reparo ou observações, bem como de resto pelo detentor da golden share e por maioria de razão do terceiro elemento da parceria e accionista da PT, a CGD.

Isto mesmo aconteceu com o relatório e contas de 2013, na sequência de todos os anos anteriores. Sendo certo que se impõe observar que anos houve, no início do século, com valores de aplicação até mais significativos do que os de 2013 e 2014.

Aqueles dados foram naturalmente facultados ao Banco avaliador dos activos na fusão com a Oi (Banco Santander Brasil), no âmbito do aumento de capital da Oi e, assim, vêem registados no prospecto do mesmo.

A título emblemático da aplicação recíproca de fundos da PT no BES e do BES na PT, mencionarei que foi o BES quem financiou a PT na aquisição das empresas brasileiras que, conjuntamente, com as empresas adquiridas pela Telefónica viriam a formar a VIVO.

Em Março, Abril e Maio de 2014 o investimento da PT na RIOFORTE estava — para além daquela prática nunca ter sido objectada pelo Estado ou CGD, desde 2002 — solidamente apoiado no programa ETRICC de 14 de Março de 2014, que, tal como a PwC, considerava que a RIOFORTE não tinha qualquer imparidade.

O depoimento de Ricardo Salgado termina com as seguintes considerações:

Peço desculpa por ter sido demasiado longo.

Mesmo evitando opiniões e não me pronunciando sobre o que se passou após a alteração da gestão do BES, com particular relevo para a sua resolução e divisão em dois bancos, senti ser meu dever explicar os acontecimentos, o pano de fundo e os meses intensíssimos vividos entre Outubro de 2013 e Julho de 2014.

Tentei ser factual e objectivo.

Apesar de saber que, mais de um ano de diária apresentação pública – em jornais, televisão e internet – como responsável e responsável todo poderoso por várias crises no BES, no GES e noutras áreas económicas, sociais e políticas já fez caminho no espírito de muitos portugueses e criou condições para juízos condenatórios imediatos e sem apelo, mesmo se apressados e injustos.

Tentei sempre preservar a unidade do Grupo e da Família, até por sempre ter entendido que ninguém sai ileso de uma guerra familiar.

Um nome pode ser apagado da fachada de um banco, mas não pode ser apagado da História e de uma família com 145 anos ao serviço de Portugal.

Tentei evitar apreciações políticas. Recordo com gratidão o quanto estadistas tão diversos como o Sr. Dr. Mário Soares e o Prof. Cavaco e Silva foram essenciais para o nosso regresso a Portugal.

Recordo, com saudade, o Professor Ernâni Lopes que sempre considerou o GES um dos grupos estruturantes e centro de racionalidade da economia portuguesa.

E devo reconhecer que mesmo os revolucionários de Abril nunca se sentiram na necessidade de apagar um nome ainda quando mudaram um regime.

Sei que muitos perderam tudo com o desaparecimento do BES e a insolvência do GES.

Sei que o mais fácil em tempo de crise, de sofrimento, de revolta social é encontrar responsáveis e que a História é sempre tardia em reparar erros de apreciação e de julgamento.

Procurei explicar o que o Grupo, o Banco e todos os seus colaboradores tentaram fazer para evitar um desenlace fatal.

Sei como o Grupo aceitou sair da gestão do Banco, de forma pactuada, sem rupturas sistémicas. E como propôs pistas para se reconverter e não atingir o Banco.

Sei como o Banco conseguiu, no meio de um clima dramático, realizar um aumento de capital para muitos impossível.

Sei como tudo se fez para encontrar nomes para a futura gestão que pudessem ser aceites pelo BdP.

Sei como o tempo muito longo, o ambiente especulativo, as reticências quanto ao apoio ao Grupo e as sucessivas alterações de nomes na nova gestão dificultaram uma tarefa já de si muito complexa.

Sei como contribuímos para a criação de emprego em Portugal, com colaboradores de excelência, a quem aqui deixo uma palavra de reconhecimento profundo.

Sei que desde 1991, investimos em Portugal, com os nossos parceiros, mais de 8 B€.

Não apontei o dedo a ninguém, nem antes de Julho, nem depois da resolução do Banco.

Termino com um apontamento funcional que é também pessoal. Tendo, certamente acertado e falhado muito na minha vida, sempre em consciência me considerei idóneo para servir na sucessão daqueles que fundaram e prestigiaram o Grupo Espírito Santo.

Mas sempre tive a humildade de reconhecer que cabia a outros — na supervisão — o permanente julgamento da minha idoneidade.

Ao longo de 22 anos ninguém com poder para tal — e que nunca duvidei que existisse — a questionou. Até à própria aceitação como Presidente do futuro Conselho Estratégico. Até ao momento de saída de funções.

Perdoarão pois que ouse continuar a pensar que, modestamente, servi, com idoneidade, nas tarefas que me foram confiadas no exercício da minha profissão ao longo de quarenta anos, dentro e fora do País.

*

Será interessante comparar esta narrativa com a investigação realizada pela jornalista Cristina Ferreira, do Público, e publicada neste jornal sob os títulos "Crónica do fim do império" e "A recta final".


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