sábado, 7 de janeiro de 2017

É tempo de acordar


A taxa de juro dos títulos de dívida pública a 10 anos atingiu, na passada quinta-feira, os 4%. É tempo dos portugueses acordarem. Fazemos o alerta aqui, transcrevendo este artigo de opinião do Público:


"Já posso crispar-me outra vez?

João Miguel Tavares
7 de Janeiro de 2017, 7:20

Nós estamos há um ano a gostar de ser enganados pelos actuais governantes. Garantem que é possível safarmo-nos assim, com um regoverno cheio de reversões e falho de reformas.

O Presidente da República ficou desgostoso por os portugueses terem elegido “geringonça” como palavra do ano. Ele teria optado por “descrispação”. É uma escolha surpreendente de Marcelo, desde logo porque a palavra não existe. Porto Editora, Houaiss, Aurélio, Academia – nenhum dicionário cá de casa a reconhece. Mas o que em Cavaco seria ignorância, em Marcelo é imaginação, e “descrispação” está em linha com a bonita mensagem que nos deixou na passagem do ano, quando elogiou o “clima menos tenso, menos dividido, menos negativo cá dentro e uma imagem mais confiável lá fora”.

Estamos mais descrispados, de facto, e descrispámo-nos graças a um trabalho conjunto de Marcelo e António Costa, um a dar beijos e abraços, o outro a distribuir sorrisos, numa autêntica suruba de afectos. O resultado de tanta energia positiva está à vista. Clima menos tenso? Confere. Menos dividido? Confere. Menos negativo? Confere. Uma imagem mais confiável lá fora? Não confere. Ups, há qualquer coisa que falha nesta narrativa. Ninguém pode sinceramente dizer que o país está em 2017 com uma imagem “mais confiável lá fora”, e a prova disso é que os juros a 10 anos da nossa dívida não param de crescer. Acabámos de passar a barreira psicológica dos 4%, e nada indica que fiquem por aí. E é neste ponto preciso que a história da descrispação e do clima menos tenso, menos dividido e menos negativo se revela aquilo que realmente é: uma autêntica e descabelada fraude.

Desta fraude, nem António Costa, nem Marcelo Rebelo de Sousa, devem ser considerados inocentes no dia em que o diabo chegar — porque ele, acreditem, não vai falhar à chamada. Nós estamos há um ano a gostar de ser enganados pelos actuais governantes. Garantem que é possível safarmo-nos assim, com um regoverno cheio de reversões e falho de reformas. Muitos acreditam nisso. Mas não é possível. Quando falo em “fraude” não estou a dizer que a descrispação não exista. Pelo contrário: ela existe. Estou a dizer que não deveria existir, tendo em conta o estado lastimável em que Portugal se encontra e a sua dependência total de decisões sobre as quais não tem qualquer controlo — seja o fim do programa de compra de dívida do BCE, seja a subida de juros nos EUA. O primeiro-ministro e o Presidente da República uniram as mãos para anestesiar o país: um colocou a máscara e o outro abriu o oxigénio.

Portugal, contudo, não deixa de estar deitado na mesa de operações, dependente, incapaz de tomar decisões difíceis, semi-comatoso. Ninguém está a fazer nada por ele. A esta anestesia sem intervenção cirúrgica tem-se chamado “descrispação”. Mas serve para muito pouco e está longe de ser qualquer coisa próxima de uma cura. É mesmo só um entorpecimento momentâneo, que nos distrai e alivia. Uma bebedeira de facilidades. Uma alienação dos problemas que nunca deixaram de existir. Eles permanecem lá todos, e nem sequer estão adormecidos — o simples passar do tempo agrava os seus efeitos.

Agora que os juros chegaram aos 4% que alegadamente assustam as agências de rating, e António Costa se vê obrigado a reafirmar a sua confiança no país a partir da Índia, convinha começar a substituir o optimismo descerebrado pelo realismo lúcido, e admitir que a “descrispação” é apenas um novo nome para uma velha prática: adiar ao máximo a resolução dos problemas difíceis. Querem um conselho, caros leitores? Vejam se se apressam a crisparem-se outra vez, porque nada de bom aguarda este país."


*


Com uma maioria de esquerda na assembleia da República a reverter em poucos meses os cortes de rendimentos ao funcionalismo público e aos pensionistas e um governo a aumentar o salário mínimo nacional com redução da taxa social única e a pagar prejuízos dos lesados do BES, uma voz lúcida na presidência da República seria abafada pela berraria dos manifestantes da CGTP transportados gratuitamente para Lisboa nos autocarros das autarquias comunistas da área metropolitana da capital e do Alentejo.

Ciente das dificuldades por que a população passou em consequência do resgate financeiro de Maio de 2011 e prevendo a enorme adesão que esta política de presentes de Natal do governo Costa ia desencadear nos portugueses, Marcelo Rebelo de Sousa adoptou uma estratégia com duas componentes.

Por um lado, aproximou-se das pessoas anónimas, que são quem decide o resultado das eleições nos países de regime democrático, e ganhou o afecto delas.
Por outro, relacionou-se impecável e lealmente com o actual primeiro-ministro, e usou a sua sapiência multidisciplinar — que se estende do Direito à Economia e Finanças, passando pelo domínio das línguas inglesa e alemã — para avalizar, em Bruxelas e em Berlim, um governo de competência e ética duvidosas.

Esta estratégia tem sido um sucesso, permitindo a Marcelo — constitucionalmente um chefe de Estado sem poderes, excepto o de dissolver a assembleia da República, o que seria improfícuo em tempo de distribuição de dinheiro pela população — tornar-se no presidente mais poderoso de que há memória.
Um veto presidencial a um decreto-lei do governo Costa ou a uma lei da assembleia da República, que vindo de Cavaco Silva apenas servia para a maioria parlamentar de esquerda escarnecer do presidente, passou, vindo de Marcelo, a implicar a revisão do diploma pelo governo, acatando as observações do presidente, antes de regressar ao parlamento.

Esta conjuntura não vai eternizar-se, infelizmente, para mal dos nossos bolsos, quer sejamos trabalhadores do sector público ou privado, quer sejamos pensionistas.

O crescimento anémico da economia não compensa o tremendo aumento da despesa pública. Em consequência, o Banco Central Europeu está a diminuir as compras de dívida pública portuguesa e, os juros da dívida já ultrapassaram 4%. A fasquia ainda está longe dos 7% atingidos no final de 2010, mas o trilho que a despesa pública voltou a percorrer pode conduzir a outro resgate.

A subida do salário mínimo nacional de 530 para 557 euros, neste ano 2017, será feita à custa da descida da taxa social única (TSU) paga pela entidade patronal de 23,75% para 22,5% para todos os trabalhadores que, entre Outubro e Dezembro do ano passado, tenham auferido uma remuneração base entre aqueles valores.
Como a TSU é a contribuição que suporta a Segurança Social, o governo Costa está a pôr em risco, no futuro, o pagamento das pensões e dos subsídios de desemprego.

Muitos portugueses, demasiados, não têm cultura suficiente para perceber estes riscos, limitando-se a avaliar a acção governativa através do rendimento que recebem mensalmente.
Marcelo passa a maior parte do tempo a elogiar a acção do governo Costa, enfiando, no meio do discurso, advertências subtis em que as pessoas possivelmente não reparam. Quando os portugueses tiverem de enfrentar a realidade, o choque vai ser doloroso.


Outras opiniões:

liteira.de.spam
09:19
Os juros não estão apenas relacionados com confiança mas também com especulação. A taxa de juro decorre do preço de mercado, que por sua vez decorre da procura e as razões que influenciam a procura não são objectivas. As razões mais relevantes são a liquidez, risco, inflação esperada, riqueza, custo de oportunidade. Uma das razões será certamente o seguinte facto (Reuters, 3 Jan):
"The European Central Bank bought far fewer Portuguese government bonds last month than its rules dictate, reducing its support for a country where government borrowing costs are rising and the economic outlook is uncertain. [..] The reduction in ECB purchases has never been as marked as in December, when the ECB bought 726 million euros worth — 40 percent less than it should have according to its own rules."
  • ana cristina
    10:19
    Já não via aqui o liteira.de.spam desde a última vez que os juros estiveram a 7%, quando também foi necessário dar explicações técnicas que ninguém percebe para justificar o inaceitável. Mau sinal.
  • liteira.de.spam
    10:33
    Tenho comentado com frequência. Se não via, é porque anda distraída tal como quando os juros baixaram e confundiu a intervenção do BCE com resultados da governação de Passos Coelho. É cada vez mais evidente a fraca governação de Passos Coelho — BES, CGD, BANIF, o "TINA"... enfim.
  • jmbmarte
    11:39
    Tiro no pé: Liteira, ao avançar a causa — a Europa sustenta-nos menos do que deveria —, adianta (por pura genialidade argumentativa) a causa da causa: a Europa não nos sustenta como devia porque a nossa governação é excessivamente subsidiodependente e a nossa economia não oferece a ninguém a mínima garantia.
    Tudo isto está na citação com que patetamente queria inculpar o BCE. Está lá preto no branco que o BCE apenas reage à geringonça económica e nacional portuguesa, e que não é ela que está em falta, é que 'its own rules' são inaplicáveis a países inviáveis como o nosso. É exactamente por não querer especular que o BCE atribui estes juros realistas à nossa especulação-geringonça. Por favor, Liteira, continue a fornecer munições inteligentes teleguiadas ao (seu) inimigo, que agradece.

jmbmarte
11:28
O abençoado regresso de Fra Diavolo! Em princípio, um fala-barato patológico é, enquanto hiperactivo, o oposto de um... activo: e eis o PR: confere. Quanto mais fala (depois do fogo 2016), menos faz (antes dele em 2017): era o que eu dizia a JMT, e este não ouviu. Podemos, pois, recrispar? Podemos: a par de fra Diavolo, soltam-se os diabretes de barrete de guizos, confirmando a crispação geringonçada: são as marchas populares dos manjericos do PC para desmantelar as estruturas democráticas e europeias: fim do euro, da Europa e da Nato, regresso a Putin como padroeiro dos neo-com (neo-comunas). Crispy crispy, o país está estaladiço para o célebre pequeno-almoço. Pela boca morre o peixe, marcelete.

Liberal
11:37
No fundo vivemos de novo o clássico do homem que se atira do alto do precipício, e que, a meio caminho durante a queda diz "até agora tudo bem". Mas não concordo com a existência de uma "descrispação", analfabeta ou erudita, a haver tal coisa ela resumir-se-á aos sectores que estão de novo a mamar o "oxigénio". São poucos, e sabemos bem quais são.

João Borges
12:04
Parte do país vive agradado com a situação, uns porque voltaram à mama, outros porque são governados pelos da sua "cor", outros porque odeiam a "direita" e preferem levar no lombo pela esquerda que, assim, dói um pouco menos. Essa, mesma, parte do país está pouco interessada em reformas e sacrifícios. O que pretende é ir vivendo que os amanhãs irão (desen)cantar qualquer coisa!